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terça-feira, 24 de agosto de 2010

Porque não creio. No que creio.

Marcio Azevedo

É muito estimulante, portanto complexo, viver sem crenças metafísicas em uma sociedade em que 93%, segundo o IBGE, tem religião e, portanto, acreditam em divindades. Face a esta postura incrédula, sou constantemente inquirido sobre porque não creio e, afinal, no que creio. Refletindo sobre isto, conduzo meu raciocínio em uma direção: porque as pessoas acham que se não acredito em deus, provavelmente não acredito em nada?

Ora, não sou niilista. O niilismo é uma visão de mundo que despreza todas as crenças, que vê o mundo com olhos de derrota, que crê –e isto é um baita paradoxo- na inutilidade do ser e das coisas. Não sou niilista porque creio em uma série de valores racionais; porque acho que o ser humano é absolutamente capaz de evoluir intelectualmente e tornar melhor o espaço em que vive. Aliás, em meu primeiro livro deixo bastante claro que só me é possível existir porque creio. Porque creio e decidi que a função primordial de minha existência seria lutar para tornar o mundo um lugar melhor. Óbvio que isto é um tipo de pensamento bastante piegas sob alguns aspectos. Mas, acredito que é assim mesmo que devo me expressar. Todos os dias, quando acordo, vou trabalhar, me relaciono com as pessoas, faço-o acreditando que posso fazer diferença, que sou capaz de contribuir para o desenvolvimento do pensamento daqueles com quem convivo e que é possível ajudar as pessoas a construir capacidade de crítica em relação a tudo o que os cerca. Afinal, isto sempre é uma escolha a partir do momento em que as pessoas são apresentadas ao caráter costumeiro, habitual, banalizado das suas crenças e posturas diante do mundo. Quando as pessoas conseguem enxergar que as coisas nas quais elas acreditam em nenhum momento foram racionalizadas, que elas o fazem apenas porque “alguém disse” que isto era o certo, que seus pais ensinaram que deveriam pensar dessa ou daquela forma, descortina-se um novo mundo para elas. Um mundo repleto de possibilidades, de potencialidades e, claro, de barreiras e impedimentos, também. Mas a partir daí, cada pessoa conquista o direito de escolher as suas crenças. De decidir individualmente no que quer acreditar nos próximos anos de sua existência. Sem dúvida nenhuma esta pessoa poderá consagrar e continuar as crenças de seus pais, poderá divergir e escolher outro conjunto de crenças, poderá descrer de tudo e de todos, poderá construir um sistema de crenças apenas racionais, ou de crenças racionais mescladas com grande espiritualidade. E a partir do momento em que tiver construído esta criticidade, esta pessoa terá todas as condições para tornar melhor o mundo em que vive. Pode até optar por não fazê-lo, mas sempre terá consciência de que fez uma escolha, de que optou pelo individualismo e, se tiver coragem, sempre assumirá isto diante dos outros. Então, todos os seus atos, sempre serão fruto de um ato consciente, não-manipulado. Mas se a pessoa escolher tornar melhor o mundo em que vive, mesmo que isto se dê em um âmbito apenas doméstico, então, sem dúvida alguma o mundo será um lugar mais interessante para viver a partir daquele momento.

Caso consiga contribuir para que meus educandos atinjam este estágio de criticidade, independente de suas escolhas, seja pelo individualismo, seja pelo que chamo de coletivismo, fico em paz, com a consciência tranquila de que realizei o que me propus. Devo afirmar, apenas para reforçar, que o ideal é que as pessoas assumam a segunda postura, que sempre espero isto de cada ser com quem convivo, mas não tenho direito de absolutizar nada, de ser autoritário e tentar impor o que acho certo a ninguém.

Por causa disso vivo em paz comigo mesmo. Porque as crenças que possuo foram bastante racionalizadas e sistematizadas ao longo dos últimos trinta anos. Só para constar e não deixar nada obscuro demais neste texto, sinto-me na obrigação de pontuar minhas crenças mais profundas.

Acredito no ser humano, em sua capacidade infinita de mudar tudo, de se adaptar a quaisquer circunstâncias. Acredito em justiça como uma construção de regras coercitivas, fundamentais para garantir a convivência entre díspares. Acredito na ética das relações, na capacidade de cada um ser honesto diante de si mesmo e do outro, mesmo e principalmente quando erra. Pois ser ético não é acertar sempre, é fundamentalmente reconhecer que errou, que poderá errar de novo, mas que quer tentar evitar novos erros. Acredito com todas as forças do meu intelecto no respeito que devemos ter para com cada ser vivo. Quando respeitamos o outro, independente de sua visão de mundo, de suas idiossincrasias e de suas divergências conosco, tenho absoluta certeza de que estamos contribuindo para nosso próprio crescimento intelectual, para tornar mais saudáveis as relações e para deixarmos um legado positivo ao mundo. Quando respeitamos o outro nos sentimos bem e sabemos que a recíproca é verdadeira. Acredito na rebeldia porque é um motivador de mudanças, é um impulsionador do mundo, é um antídoto à acomodação, é uma bela forma de passar a vida sobre a terra. Acredito na felicidade e no bom humor porque são chaves para uma vida mais leve, para viver sempre com prazer, para enxergar melhor as contradições de cada um. Para nunca se desesperar, mesmo quando tudo parece perdido e sem sentido.

Não acredito em divindades, em deuses, santos, milagres e quaisquer outras coisas inventadas pela imaginação dos seres humanos. O homem comum necessita de crenças metafísicas, necessita de uma potestade onipresente, onisciente e onipotente pois tem medo de estar completamente abandonado neste imenso universo. Pois tem medo de, totalmente livre para fazer o que bem quiser, dar vazão aos seus instintos mais recônditos, mais despudorados, de libertar mister Hyde, o “monstro” que habita cada ser. Então, para o homem comum deus é uma espécie de superego, sempre a postos para tolhir as ações instintivas do id e construir o equilíbrio do ego*. Este deus é também uma companhia, um verdadeiro amigo de todas as horas. É também uma tábua de salvação para as horas de desespero espiritual ou material. Quando tudo está muito ruim, acreditar que Ele oferecerá ajuda e mostrará um caminho é fundamental para continuar vivendo.

Descri porque analisei histórica e profundamente a trajetória do homem sobre a terra. Se voltarmos ao passado mais distante encontraremos nossos ascendentes vivendo em estado de natureza, cultivando seus medos e sem nenhuma compreensão sobre os fenômenos naturais. Esta é a situação ideal para o surgimento da “idéia de Deus”. Quando as pessoas não entendem absolutamente nada e não possuem o conhecimento, voltam-se para o sobrenatural que, sem necessidade de explicação explica tudo. Basta que a pessoa creia e pronto. Mais tarde, quando as sociedades foram se tornando mais complexas, as religiões passaram a ser usadas para “civilizar” as pessoas, passaram a ser agentes coercitivos que, através de regras e doutrinas, instruíam as pessoas a não fazerem certas coisas, a não tomar certas atitudes pois isto agradaria ao seu deus. Caso este viés não fosse suficiente, a ameaça de um pós-vida de tortura eterna teria de funcionar para manter as pessoas sob controle. Pronto, estava inventado o inferno e seu proprietário, o esperto e cruel demônio. E para garantir que ele nunca possuísse mais poder do que Deus, o ocidente inventou que ele não passava de um ex-anjo (portanto, criado por Deus) que havia pecado e “caído”. Como foi visto que este tipo de manipulação das pessoas funcionava, mais tarde os reinos, impérios e, posteriormente, os Estados-Nação, passaram a usar a religião como forma de controle social, para manter as pessoas pacatas, ordeiras e acomodadas, o que ocorre até hoje. Fica claro então que deus, doutrinas e todo o aparato que acompanha esta visão de mundo foram devidamente inventados pelos seres humanos, primeiro para aplacar seus medos; em seguida para manter a ordem; e, finalmente para controlar a sociedade e sustentar imensos aparatos burocráticos compostos por templos, sacerdotes, despesas, salários etc.etc. No fim das contas tudo isto é perfeitamente dispensável.

Então, diante dessas conclusões sobre a origem da crença na divindade, posso afirmar com tranquilidade que não preciso de Deus para existir, para continuar vivendo. Posso viver com minhas crenças racionais, aceitar minhas limitações, buscar uma vida plena sem precisar olhar o mundo como um espaço pertencente a um ser supremo. Vivo sem pai biológico há 28 anos e não sucumbi. Sem mãe biológica há 26 anos; portanto, sou perfeitamente capaz de prescindir de um pai celestial. Recentemente recebi um e-mail de um ex-aluno, Carlos Augustus, em que ele afirma que assumiu seu ateísmo e não esquece uma frase que ouviu de mim. Faço questão de reproduzir: “Há, aproximadamente, um ano o senhor indicou-me ler e acompanhar o trabalho do Doutor Richard Dawkins e gostaria de dizer a você que gostei muito do trabalho dele e estou mergulhando fundo na filosofia ateísta, pois como o senhor mesmo disse, lembro-me até hoje dessas palavras: ‘Quando o ser humano perde o medo e decide assumir que está sozinho para enfrentar seus problemas, ele vira ateu; não precisa mais de Deus.’
Acho que se não fossem tais palavras eu ainda seria um "ateu dentro do armário" como diz Dr. Richard Dawkins”.

Concluindo de forma bem humorada: defendo minha privacidade e meus momentos de solidão com unhas e dentes e seria horrível crer em um ser que tudo vê (onisciente) e que está em todos os lugares (onipresente). Estou fora.


* Id, ego e superego são conceitos da psicanálise freudiana. Explicando de forma simples, o id é a criança sem limites, sem conhecimento de regras, livre; o ego é a consciência, é como nos mostramos para os outros; o superego é a capacidade coercitiva, é a imposição de limites.