Total de visualizações de página

sábado, 4 de dezembro de 2010

Crime organizado no Rio de Janeiro

Invadir é muito fácil.
Se acreditarmos docemente, docilmente no que a grande mídia tem veiculado ao longo dos últimos dias, rapidamente chegaremos a duas conclusões: I. o Rio se transformou numa Colômbia de tempos idos ou no atualíssimo México, totalmente conflagrado em uma guerra civil sem trégua; II. A paz social finalmente chegou graças à firme e decidida ação da polícia, a polícia de nossos sonhos.

Evolução do crime organizado no Rio

Nenhuma das duas opções procede, nenhuma é verdadeira nem será, pelo menos a curto ou médio prazo.

A evolução do crime organizado no Rio de Janeiro começa na década de 70 com a criação da Falange Vermelha que teve como líderes principais Rogério Lemgruber (o Bagulhão), Willian da Silva Lima (o Professor), José Carlos dos Reis Encina (o Escadinha), Jorge Saldanha (o Zé do Bigode) e Orlando Conceição (o Orlando Jogador). Outros se somariam a estes, assumindo o controle de diversas favelas tais como José Carlos Gregório (o Gordo), Darcy da Silva Filho (o Cy de Acari), Romildo Souza Costa (o Miltinho do Dendê), e Zacarias Gonçalves Rosa Neto (o Zaca) entre outros. A política desses criminosos em relação às comunidades era muito clara. Impediam outras atividades criminosas na região, agindo como justiceiros do local e davam assistência do tipo cesta básica, transporte para hospitais e pagamento de funerais dos moradores. Estes chefes do tráfico consideravam as escolas como verdadeiros santuários que ninguém devia desrespeitar. Muitos diretores quando tinham problemas sérios com alguns alunos recorriam a eles que atemorizavam a criança/adolescente, exigindo respeito para com os professores e funcionários da escola. Também era comum que pais de filhos muito rebeldes levassem o filho para ter uma “conversinha” com o líder local do tráfico. Além disso não incomodavam as associações de moradores, até mesmo ajudando-as. Tanto que na década de 80 muitos suspeitavam de relações perigosas entre a FAFERJ (Federação das Associações de Moradores das Favelas do Rio de Janeiro) e os criminosos, algo que nunca foi provado. Isto os fazia respeitados e até mesmo admirados por muitas pessoas das favelas. Devido a estas práticas, como contrapartida, recebiam proteção de muitos moradores. Mas, na medida em que esta “velha guarda” foi sendo aprisionada ou morrendo, novos chefes foram assumindo o controle do tráfico nas favelas e a relação com os moradores se deteriorou.

As coisas também pioraram porque no final de década de 80 teve início o fracionamento da Falange em função da luta pelo poder, sua posterior mudança de nome para Comando Vermelho e o surgimento de novos grupos dos quais ainda atuam com alguma importância basicamente o CV, o ADA (Amigos dos Amigos) e o TCP (Terceiro Comando Puro). Além disso, no final da década de 90 ocorreu um recrudescimento do fenômeno das milícias. Antigos esquadrões da morte formados geralmente por policiais, ex-policiais, ex-integrantes das ffaa e bombeiros, estes grupos decidiram retomar algumas favelas das mãos do tráfico e entrar em outras, oferecendo “proteção” aos moradores e posteriormente, diversificando suas atividades, passando a controlar a venda de botijões de gás, gatonet (TV a cabo pirata) e do transporte alternativo. Isto deu origem a uma luta pelo controle das comunidades já que os negócios haviam se expandido consideravelmente, gerando uma lucratividade extraordinária para os bandidos. Segue-se que muitas favelas passaram a ser dominadas por bandidos de fora, que não tinham nascido nem tinham residência ali. As comunidades reagiram mal a isto e se dissociaram completamente dos bandidos. Isto gerou uma forte reação, pois os traficantes e milicianos passaram a se impor pelo terror, impondo um cotidiano de violência e desrespeito para com os moradores. Como contrapartida, muitos moradores passaram a denunciar com frequência as ações do tráfico e das milícias, levando a mais fraturas nas relações dentro das favelas. Esta situação não mudou como pudemos perceber na atitude dos moradores estes dias, aplaudindo e dando boas-vindas aos policiais na Vila Cruzeiro e no Alemão.

Geografia do crime no Rio

Atualmente os grupos estão divididos no que diz respeito ao controle das favelas, da seguinte forma:

COMANDO VERMELHO – Controle da Zona Norte e parte da Leopoldina. O quartel-general fica (va) no Complexo do Alemão, principalmente devido ao seu tamanho, à ligação com a Vila Cruzeiro e às suas 44 vias de escape. Um estudo recente realizado pelo antropólogo Paulo Storani com 250 favelas detectou a presença do CV em 84 delas, mas é preciso ressaltar que há cerca de 1000 favelas no Rio e o estudo detalhou a situação de ¼ delas.

ADA (Amigos dos Amigos) – Controle de boa parte da Zona Sul, dos Complexos da Maré (Leopoldina), Pedreira (Costa Barros) e Centro (São Carlos, Zinco, Querosene, Mineira e Coroa). Racha do CV, seu fundador foi Paulo Cesar Silva dos Santos (o Linho) que desapareceu. Teve também a liderança de Ernaldo Pinto Medeiros (o Uê), morto em Bangu a mando de Fernandinho Beira-Mar, atual líder principal do Comando Vermelho e preso em presídio de segurança máxima. O líder principal do ADA atualmente é Antonio Francisco Bonfim Lopes (o Nem) e seu QG é a Rocinha. Atualmente o ADA é um grupo criminoso diferenciado, quase com características de máfia. O traficante Nem não se furta em ajudar a comunidade da Rocinha, o que faz com que tenha importantes apoios ali dentro. Além disso o grupo investiu na profissionalização do crime, treinando seus soldados e importando muitos deles da região Nordeste. Há uma contabilidade rigorosa que possibilitou o aumento sistemático dos lucros nos últimos anos. Outra característica importante do ADA é sua capacidade de negociar evitando ao máximo a violência. Tentam, com esta atitude, evitar dar “trabalho” à polícia. Isto é reconhecido por muitos policiais do Rio.

TERCEIRO COMANDO PURO – Originário da Falange Jacaré, a primeira dissidência da Falange Vermelha, o TCP já teve também o nome de Terceiro Comando, tendo sido desarticulado por iniciativa de Beira-Mar. Foi fundado por Nei da Conceição Cruz, o Facão que está preso. Sua área de atuação mais forte é a Zona Oeste, sendo o QG no Taquaral, mas com ramificações em Senador Camará (Rebu, Cavalo de Aço, Vila Aliança e Coréia). Tem presença também em Acari e no Amarelinho, Parada de Lucas entre outros. O líder mais importante depois de Facão foi Robson André dos Santos (o Robinho Pinga), morto de câncer no cérebro em 2007. Atualmente seus líderes são Márcio José Sabino Pereira, (o Matemático), um dos fundadores, Capilé, Abelha e Crânio. Tal como o CV é considerado um grupo muito violento.

AS MILÍCIAS – Não há uma liderança unificada, mas ocorrem relações eventuais entre algumas delas e entre milicianos e traficantes, tais como “venda” de favelas entre outras coisas. Tidas como “mal menor” durante algum tempo, atualmente são bastante combatidas pelo Estado por causa de sua truculência, da presença de policiais, do tráfico de drogas e outras atividades ilícitas. Tem forte atuação na Zona Oeste e penetraram na Baixada Fluminense. Alguns de seus líderes chegaram a se eleger vereadores e deputados, mas tiveram seus mandatos cassados. Juntas controlam mais favelas do que os outros três grupos criminosos, mas há uma batalha constante para a permanência no controle de suas áreas. O filme Tropa de Elite 2 mostrou de forma bastante crua a realidade desses grupos.

A ação das polícias

Embora seja redundante, é preciso deixar claro que a situação do Rio só chegou a este ponto porque as forças de segurança permitiram. Significativa parcela de policiais civis e militares tem relação com os traficantes e com as milícias. Estas relações ocorrem em diversos níveis. Pode ser a mais comum que é receber uma propina para “virar a cara” (em vários locais isto fica na casa dos 400,00 por semana para os subalternos); o “arrego” pode ser de outro jeito, com os policiais entrando nas favelas para pegar a grana da semana em troca de não invadirem o local; pode ser também o pagamento para libertar alguém importante que foi preso de forma fortuita; pode ser através de associação direta entre policiais e traficantes. É preciso deixar claro que este processo de suborno não envolve apenas os praças, cabos e sargentos. Há oficiais intermediários e até mesmo vários coronéis na jogada.

Além disso, historicamente o Estado abandonou as favelas, deixando-as entregues à própria sorte. Criou-se uma cidade informal com uma população que precisa ter acesso a todos os serviços básicos de infra-estrutura existentes na cidade formal. Ora, se o Estado não oferece os serviços, esta população vai buscá-los da forma que for possível, geralmente de maneira ilegal, o que não quer dizer que o povo dessas comunidades seja criminoso. Apenas estão sobrevivendo da forma que podem. Na verdade pode-se dizer que estão praticando atos de desobediência civil embora não tenham consciência disso. Da mesma forma, no que diz respeito ao quesito segurança pública, as comunidades foram totalmente abandonadas pelo poder público que deixou o tráfico, e mais recentemente as milícias, tornar-se polícia, justiça e carrasco dentro delas.

A atual situação

A polícia do Rio vem implantando no governo Cabral uma política de entrada e permanência nas favelas dominadas pelo tráfico de drogas. Esta política não é nova nem inédita. Já havia sido proposta por Luis Eduardo Soares no final da década de 90, quando secretário de Segurança Pública. Mas, inegavelmente é um projeto que merece apoio, embora ainda esteja no início (há apenas 13 UPPs implantadas) e apresente inúmeras falhas. Não há dúvidas de que para o Estado assumir efetivamente o controle da maioria das favelas do Rio serão necessários muitos anos de políticas sistemáticas de segurança e melhorias sócio-econômicas. Quanto maior for o desenvolvimento econômico do país, quanto maior for o investimento em educação e em geração de emprego e renda, maiores serão as facilidades para a redução de todo tipo de criminalidade. É fundamental que tais políticas estejam acopladas para que haja avanços em todas as pontas.

O tráfico é absurdamente lucrativo, pois um quilo de maconha pode render mais de mil reais e um quilo de cocaína pode render cerca de 15 mil reais. Por isto é tão difícil e desinteressante desarticular o modelo territorialista implantado no Rio de Janeiro pois rende dividendos para milhares de criminosos e outros milhares de policiais corruptos. Se levarmos em conta o que foi encontrado e apresentado à mídia, entre armas e drogas no Complexo do Alemão, o prejuízo para os traficantes já se aproxima de 100 milhões de reais. E, começam a pipocar denúncias de que drogas (cocaína, principalmente), armas e dinheiro sumiram misteriosamente, já que os jornalistas não têm permissão para acompanhar as batidas policiais. Os jornais já estão trazendo denúncias de que alguns chefes do tráfico teriam fugido em carros da polícia, sob proteção de agentes da lei. Outras informações dão conta de que muitas drogas e armas foram retiradas do Alemão dentro de Caveirões, os blindados da polícia. Igualmente circulam informações nos bastidores das operações de que os caveirões teriam sido utilizados para retirar dezenas de corpos de traficantes sem identificação para serem enterrados em cemitérios clandestinos em Magé e São Gonçalo. A polícia reportou cerca de 50 bandidos mortos e não tem explicação convincente para o sumiço de mais de duzentos criminosos. Não interessa ao governo divulgar um número muito elevado de mortes pois as organizações internacionais de direitos humanos tais como a Human Whrigts Watch e a Anistia Internacional estão acompanhando de perto as operações, prontas para denunciar violações e execuções. E isto tem sido dito por policiais que estão acompanhando as operações. Lamentavelmente a maioria da população do estado considera que o correto é a matança, é o assassínio dos criminosos. Acreditam que a Lei de Linch, muito utilizada no Oeste dos EUA no final do século XIX, é a mais adequada para os traficantes. Esta posição reacionária é corroborada pelos agentes da lei que se consideram no direito de executarem quaisquer pessoas. A população, ignorantemente não entende que esta “carta branca”, esta “licença para matar” dada aos policiais leva a sociedade inevitavelmente ao estado de barbárie absoluta, e que isto, em algum momento, pode se voltar contra os cidadãos de bem, pois como se sabe a História está cheia desses exemplos. É muito difícil para o povo mais simples entender o que significa Estado de Direito. Mas espanta ver pessoas com elevado grau de instrução e de informação assumirem este tipo de posição homicida, como vem ocorrendo estes dias em diversos círculos. Isto sim é muito perigoso.

Outro dado muito importante que não tem sido divulgado pela mídia é que esta operação na Vila Cruzeiro e no Alemão já vinha sendo planejada pela polícia há algum tempo. As ações terroristas perpetradas pelo tráfico apenas aceleraram a execução do que vinha sendo articulado. A polícia vinha se preparando para dar um grande golpe no Comando Vermelho, considerado o maior inimigo entre os grupos criminosos. Portanto, nada foi de última hora, não foi apenas uma ação reativa das forças de segurança. Já havia um planejamento estratégico que foi antecipado em função dos acontecimentos. Neste sentido, não há dúvidas de que os criminosos deram uma ajuda à polícia criando um clima de terror e pânico no estado. Não se pode negar também que nem todos os incêndios de automóveis foram realizados pelo pessoal do CV. Sabe-se que algumas milícias também participaram, tentando se aproveitar da situação para enfraquecer o CV. Já houve até relatos de carros incendiados por seus próprios proprietários, aproveitando a “onda”, em busca do dinheiro do seguro.

O saldo é positivo no que diz respeito ao golpe desferido contra o CV. Alguns afirmam que vai ser bastante difícil eles se recuperarem nos próximos meses. Há policiais vaticinando que pode até ocorrer uma dissolução do grupo.

Concluindo

Em vários países desenvolvidos há tráfico de drogas ilícitas. A Holanda é o caso mais emblemático a ser citado. Ali as drogas leves (maconha, haxixe) são liberadas para venda nos coffe shop, com uma limitação semanal. Mas há nas grandes cidades como Amsterdã e Roterdã, venda livre de drogas pelas ruas, como pude constatar pessoalmente. Vende-se cocaína, Ecstasy e LSD à vontade, de forma pacífica e desarmada. Isto significa que não existe o terror nem a submissão de parte da população a traficantes truculentos. Ninguém fica refém de criminosos em seus bairros. Há outros países como os Estados Unidos onde, nas periferias, por omissão das forças policiais tal como no Rio, e em função da forma como os sucessivos governos vêm tratando a questão (a famosa e ineficaz War on Drugs), as populações acabam ficando reféns de grupos criminosos. Mas está claro que este modelo territorialista e fortemente armado tende a desaparecer na medida em que o Estado vai assumindo de fato suas funções de proteção da sociedade. Pode parecer um pouco utópico mas aparentemente o que ocorre em países como a Holanda é um possível caminho futuro do tráfico de drogas em diversos outros países, incluindo o Brasil.