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domingo, 28 de março de 2010

Capitalismo financeiro e a necessidade dos Paraísos Fiscais

Marcio Azevedo

A terceira fase do Capitalismo financeiro consagrou a especulação como fator fundamental de acumulação de capital. Ao longo das últimas décadas as políticas de regulação dos mercados financeiros foram sendo desmontadas visando facilitar o livre fluxo de capitais por todos os mercados. Estes capitais ganharam apelidos como smart money ou hot money, dada a rapidez com que se movimentam, em busca das melhores oportunidades de ganhos. Os defensores desse modelo afirmam que aí está a essência do Capitalismo, que é natural a busca de ganhos crescentes, que os mais ousados e capazes são os que mais lucram e, rebatendo seus críticos, que num mundo competitivo os que ficam para trás não souberam se posicionar nem obter ativos, não havendo necessidade de lamentações nem de programas sociais piedosos para os não capazes. Além disso, afirmam peremptoriamente que não precisam do Estado e que este deveria apenas ater-se a obrigações mínimas e assistir passivamente o “esplendor da ação capitalista”. A postura desses liberais é, sem dúvida alguma, o mais puro DARWINISMO SOCIAL. Por isto os críticos dessa posição afirmam que ela está marcada pelo signo da hipocrisia, visto que se recusa a reconhecer que não existe riqueza para todos, que o capital rentista nada gera em termos produtivos para a sociedade e que eles, os liberais, precisam sim, e muito do Estado para colocar em prática suas propostas, evitar convulsões sociais através da ação coercitiva e salvá-los quando as crises causadas por sua irresponsabilidade e excessiva ganância assolam o mundo todo.

Toda esta introdução sobre a financeirização do capital foi necessária para possibilitar compreensão adequada sobre o fenômeno dos PARAÍSOS FISCAIS. Há inúmeras definições sobre paraísos fiscais. De forma simples podemos dizer que são regiões ou países em que não há controle sobre a entrada ou saída de capitais e a cobrança de impostos é reduzida ou inexistente. Além disso, nestes territórios é preciso haver estabilidade política para garantir a segurança jurídica necessária aos depositantes, pois não pode haver nenhum risco de confisco do dinheiro. Outras características são: ausência de controles cambiais; tratamento igualitário para nativos e estrangeiros, pois não pode haver nenhum impedimento para a realização de investimentos externos; e confidencialidade e sigilo bancário. O objetivo dos gestores desses locais é facilitar a entrada de muitos recursos em seus territórios, que em parte serão utilizados por eles para suprir suas necessidades internas. Ou seja, é uma relação de protocooperação, para utilizar um termo da Biologia. E o interessante neste processo é que os paraísos fiscais costumam apresentar uma estabilidade econômica espantosa. Como? Bem, nos momentos de expansão econômica uma enormidade de recursos de pessoas físicas e jurídicas é carreado para estas regiões. Da mesma forma, nos momentos de crise e instabilidades, buscando proteger seus recursos, os mesmos atores transferem somas elevadas para estes paraísos. Nota-se então, que as crises costumam passar ao largo dos paraísos fiscais, sendo esta uma razão muito importante para sua existência e continuidade.

A existência destes centros offshore, como também são chamados, não seria um problema se eles não tivessem se tornado grandes sorvedouros de dinheiro ganho ilicitamente ou destino de recursos evadidos de outros países por conta do descaminho fiscal (para não pagar impostos o detentor do dinheiro o retira do país, reduzindo a arrecadação e prejudicando a sociedade).

A Suíça é o caso mais conhecido de paraíso fiscal, sendo um dos mais antigos países a garantir sigilo bancário absoluto de suas famosas contas numeradas. Em função disso o país durante muito tempo foi o destino principal de imensa quantidade de recursos oriundos de fraudes e crimes. Nos anos 70, o sociólogo suíço Jean Ziegler publicou o livro "A Suíça Lava Mais Branco", um libelo contra a criminalidade acobertada pelo sistema financeiro de seu país. Foi uma das primeiras publicações que questionavam o papel internacional dos centros offshore. E, a sempre discreta Suíça voltou a ficar em evidência negativa quando em 1997 veio à tona “o escândalo da descoberta de contas inativas de judeus vítimas do nazismo. Na mesma época, confirmou-se que, entre 1940 e 1945, os bancos suíços haviam lavado, trocando por francos conversíveis, 75% do ouro saqueado por Adolf Hitler das reservas dos países europeus ocupados, além das jóias dos detidos e mortos em campos de concentração, roubadas e fundidas” (Claudia Antunes - FSP, 30/08/2001). Por causa destes e outros escândalos, como foi o caso da descoberta da conta secreta de Paulo Maluf no Citibank de Genebra ou da descoberta das contas secretas dos ditadores Sani Abacha (Nigéria) e Mobutu Sese Zeko (R.D. Congo, ex-Zaire), nos últimos anos o país tem buscado cooperar mais com autoridades fiscais de outros países e monitorar os capitais que ali buscam refúgio. Ainda assim, não se pode menosprezar o papel da Suíça na defesa dos seus interesses e daqueles que ali escondem capitais. Como afirma Jean Ziegler "para ter uma idéia, dos cerca de US$ 3 bilhões depositados por Sani Abacha, pouco mais de US$ 500 mil foram encontrados e bloqueados".

Embora se mantenha como referência a Suíça perdeu muito do seu “glamour” como destino dos capitais ilícitos. Proliferaram nas últimas décadas os centros offshore por todos os continentes, oferecendo sempre mais vantagens aos “poupadores”. Alguns artigos sobre o assunto apontam a existência de 58 e outros de 69 paraísos fiscais espalhados pelo mundo. A maioria absoluta são ilhas.

Os usos ilegais mais comuns para os paraísos fiscais são:

1- Lavagem de dinheiro (capitais obtidos de forma ilícita são preparados para entrar no circuito econômico legal);
2- Fraudes financeiras e comerciais (desvio de dinheiro de empresas e de governos);
3- Instituições fantasmas (bancos que utilizam nomes parecidos com os de grandes instituições internacionais, mas que nada tem a ver com essas instituições);
4- Abrigo para capitais usados com finalidades criminosas (como os capitais obtidos por narcotraficantes, grupos mafiosos, terroristas ou outros criminosos).

Nos últimos anos alguns países, como é o caso do Brasil, vem defendendo mais controle dos paraísos fiscais pela comunidade internacional (até porque cerca de 70% do dinheiro que sai do país tem como destino ou ponto de passagem algum paraíso fiscal). No início de abril de 2009, em Londres, na reunião do G20, Grupo dos 20 países mais ricos do mundo, o tema foi um dos destaques. Os líderes do grupo querem maior transparência no sistema financeiro internacional e concordaram, inclusive, em aplicar sanções contra os países que se negarem a reformular sua legislação bancária. Ainda assim é preciso não se deixar enganar por este discurso. Num momento de crise cada centavo a mais nas contas governamentais tem grande importância. Como afirma o economista Otto Nogami, do Ibmec-SP, "os paraísos fiscais são estacionamentos de baixo custo para o capital. Restringi-los poderá fazer com que esse dinheiro se desloque para setores produtivos", além de possibilitar aumento da arrecadação fiscal. O governo dos Estados Unidos afirma que perde cerca de US$ 100 bilhões por ano em arrecadação por causa dos paraísos fiscais. E segundo estudiosos da questão há mais de 3 trilhões de dólares depositados em contas offshore no mundo.

É muito importante, para finalizar, deixar claro que não é do real interesse do Capitalismo internacional acabar com os paraísos fiscais. Desde 1989, quando da reunião de cúpula do G7 em Paris, foram iniciadas “campanhas” contra a lavagem de dinheiro sujo e a corrupção. E até agora o que se viu foi a inocuidade total de tais campanhas, pois não há real intenção de desmobilizar os paraísos fiscais. Ao contrário, governos, transnacionais e organizações criminosas associam-se para preservar seus negócios, seus lucros e manter ativos os centros offshore, um refúgio seguro contra qualquer turbulência. Além do mais parte significativa do dinheiro depositado nestes territórios entra no mercado especulativo global através da rede SWIFT, [rede de telecomunicações financeiras mundiais interbancárias que reúne cerca de 4 mil bancos em uma centena de países e assegura dois milhões de transferências codificadas por dia] ou do sistema CHIPS [câmaras de compensação dos sistemas de pagamento interbancários, que operam a cada dia cerca de 1 trilhão de dólares de movimentação de fundos], facilitando a lavagem do dinheiro através da movimentação do mesmo por dezenas de países em poucos dias e contribuindo para aumentar os lucros de todos os que participam dos mercados especulativos. Outra parcela significativa destes capitais financia ações clandestinas de organizações como a CIA e o FBI, só para ficar nos dois mais “famosos”. Da mesma forma, parte destes recursos financia conflitos em dezenas de países, alimentando a expansão das indústrias de armamentos e colaborando com o mercado de trabalho e a economia dos países que mais vendem material bélico no mundo (Estados Unidos, França, Inglaterra, Rússia, etc.).

Em artigo no Le Monde Diplomatique de 12/04/2000, Chistian de Brie afirmava com propriedade “(...) ora, 95% dos paraísos fiscais são antigas sedes de balcões de negócios ou colônias britânicas, francesas, espanholas, holandesas, norte-americanas que permaneceram dependentes das potências tutelares e cuja soberania fictícia serve de tapa-buraco para uma criminalidade financeira”. Portanto, fica bastante claro que se houvesse real interesse das potências capitalistas em erradicar do mundo os paraísos fiscais isto seria feito num “piscar de olhos”. Mas a utilidade deles para o sistema capitalista é grande demais, razão pela qual continuarão a exercer seu papel predador e criminoso ainda por muito tempo.

domingo, 21 de março de 2010

O povo esquecido - A situação do Saara Ocidental

Marcio Azevedo


A Carta das Nações Unidas, de 1945, ratificada pelo artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos humanos, de 1948, consolidou no âmbito do Direito Internacional público o respeito ao princípio da igualdade de direitos e autodeterminação dos povos. Ao longo das últimas seis décadas a ação da ONU pautou-se pela defesa, na maioria das vezes retórica, deste princípio. Algumas práticas daquele organismo no que diz respeito ao tema devem ser ressaltadas. Por exemplo, o povo palestino tem representação na ONU, assim como os timorenses antes da independência também possuíam. Tendo em conta este princípio a ONU apoiou explicitamente a luta do povo da Namíbia por sua independência em relação à África do Sul (que ocorreu em 1990); deu apoio à independência da Eritréia em relação à Etiópia (que ocorreu em 1993); e, entre outras ações, deu apoio irrestrito à luta pela independência do já citado Timor Leste em relação à Indonésia (ocorrida em 2002).

Entre as muitas histórias trágicas de povos que vem lutando incessantemente por seu direito à autodeterminação e à soberania sobre seu território na atualidade, devemos obviamente lembrar dos palestinos, dos curdos, dos chechenos, dos tâmeis, entre muitos outros. Contudo há um povo que costuma ser esquecido não só pela mídia, mas também pela maioria dos organismos internacionais. Este povo vive em condições absurdamente injustas e de pobreza extrema para a maioria. Trata-se do povo saarauí.

O povo saarauí ocupa historicamente uma região na parte noroeste do continente africano, voltada para o oceano atlântico, entre 20° e 28° latitude Norte e 12° e 18° longitude Oeste aproximadamente, fazendo fronteira terrestre com Marrocos, Argélia e Mauritânia. O nome do território é SAARA OCIDENTAL, sendo considerada a última colônia da África.

Em 1975, após longo período de resistência do povo saarauí, a Espanha abandonou a sua antiga colônia, deixou para trás um país sem quaisquer infra-estruturas, com uma população completamente analfabeta e desprovida de tudo. Com apoio explícito do governo espanhol a Mauritânia (que assenhora-se de 1/3 do território, ao Sul) e o Marrocos (que fica com o restante), invocando direitos históricos, invadiram o território. Seguiu-se uma luta sem quartel em que o exército saarauí denominado Frente Polisário (acrônimo de Frente Popular de Libertação de Saguía el Hamra e Rio d’Ouro), apoiado pela Argélia, acuou o exército da Mauritânia -que acabou por desistir da reivindicação em 1979-, e conseguiu libertar a parte oriental do território. O exército marroquino, para proteger seus interesses, construiu um imenso muro de concreto, separando o leste da parte centro ocidental do país e mantém sob seu controle esta região até hoje. O interesse do Marrocos no território segundo o IEEI, Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais, “reside no facto deste constituir um dos maiores depósitos mundiais de fosfato, possuir consideráveis recursos piscatórios da costa marítima e (potencialmente) em termos de reservas de gás e petróleo.” Além disso, acredita-se que exista muito urânio, cobre e ferro na região.

Desde a década de 70 a ONU vem buscando um acordo que promova a paz na região e garanta a independência do Saara Ocidental. Uma das causas mais importantes da não obtenção de um acordo de paz é o total descaso das potências quanto à situação do povo saarauí. Os refugiados vivem em casebres de taipa, em casas de material mais resistente e em barracas, e submetidos a condições de vida extremamente difíceis - um calor tórrido no verão, um frio glacial no inverno e tempestades de areia. Dependem inteiramente da ajuda internacional e se consideram os esquecidos da terra.

Em 1991 uma missão da ONU impôs um cessar-fogo na região e acordou um referendo sobre seu destino político. O Marrocos aceitou, mas simplesmente não se mobilizou para a realização do referendo que ocorreria em 1993. Em 2003, o enviado especial da ONU para o território, James Baker, apresentou o Plano Baker, conhecido como Baker II, que daria imediata autonomia à Autoridade do Saara Ocidental durante um período transitório de cinco anos para se preparar para um referendo, oferecendo aos habitantes do território a possibilidade de escolher entre a independência, a autonomia no seio do Reino de Marrocos, ou a completa integração com Marrocos. A Frente Polisário aceitou o plano, mas Marrocos rejeitou-o.

O Saara Ocidental é governado do exílio pelo presidente Mohamed Abdelaziz, adotou o nome oficial de República Árabe Saarauí Democrática (RASD) e participa como membro efetivo da União Africana. As negociações prosseguem até hoje sem sucesso. Tanto a Espanha como a França mantém apoio ao Marrocos, dificultando a independência total do Saara Ocidental. Além das questões econômicas, há aspectos mais complicados. O Marrocos é um fiel aliado das potências ocidentais, além de estar localizado em uma região estratégica (na entrada do mar Mediterrâneo). E os Estados Unidos, embasados em sua estratégia de “Guerra ao Terror”, temem que o Saara Ocidental, independente, transforme-se em base para treinamento de militantes da Jihad islâmica (guerra santa).

Em 2007 o Marrocos e a Frente Polisário reiniciaram negociações mediadas pela ONU, mais uma vez sem sucesso. Esta semana a ONU anunciou mais uma vez que há chances reais de se chegar a um acordo e que o Marrocos estaria disposto a encontrar uma solução para o impasse. A despeito disso tudo o povo saarauí continua a viver sob condições ultra-difíceis e as soluções para sua situação ainda não chegaram após 35 anos de luta e espera.

Veja no mapa abaixo a situação do Saara Ocidental:


Em vermelho a parte ocupada pelo Marrocos; em
verde a parte ocupada pela Frente Polisário (RASD)

domingo, 14 de março de 2010

Brasil pressiona os EUA no caso do algodão

Marcio Azevedo

Esta semana o governo brasileiro publicou no Diário Oficial a primeira lista de produtos dos Estados Unidos que sofrerão taxações extras para serem importados daqui para frente. Tal medida é chamada de retaliação cruzada e refere-se ao direito obtido pelo Brasil junto à OMC (Organização Mundial do Comércio) de obter vantagens em valores acima de US$ 800 milhões no comércio com os EUA.

Há oito anos o Brasil luta na OMC para derrubar os subsídios (auxílio governamental) que o governo estadunidense oferece aos seus produtores de algodão, causando uma perda de competitividade dos produtores de outros países. Somente agora o governo brasileiro obteve vitória final para retaliar os EUA, obrigando-os a vir para a mesa de negociações.

A OMC foi criada em 1994 durante a Conferência de Marrakesch, ao termo das complexas negociações da Rodada Uruguai. O surgimento da OMC veio coroar a montagem da arquitetura mundial da nova ordem internacional, que começara a ser delineada no fim da Segunda Guerra Mundial, com a criação do FMI e do Banco Mundial, todas instituições surgidas de Bretton Woods. As suas funções são: gerenciar os acordos que compõem o sistema multilateral de comércio; servir de fórum para comércio internacional (firmar acordos internacionais); e supervisionar a adoção dos acordos e implementação destes pelos membros da organização (verificar as políticas comerciais nacionais). Outra função muito importante da OMC é o Sistema de Resolução de Controvérsias, o que a destaca entre outras instituições internacionais. Este mecanismo foi criado para solucionar os conflitos gerados pela aplicação dos acordos sobre o comércio internacional entre os membros da OMC. As negociações na OMC são feitas em Rodadas; atualmente ocorre a Rodada de Doha iniciada em 2001. Como se pode perceber a organização tem bastante poder no que diz respeito às questões comerciais internacionais.

Como o Brasil saiu vitorioso no contencioso sobre o algodão com os Estados Unidos, a OMC autorizou o país a fazer a retaliação cruzada, ou seja, taxar bens e serviços além da quebra de propriedade intelectual (patentes). Isto dá ao país um poder de barganha extraordinário, pois ao escolher (como fez o Brasil) taxar produtos importantes de áreas poderosas da economia estadunidense (filmes, veículos, etc.), o Brasil faz com que estes setores se voltem contra o governo dos EUA e o pressionem para negociar. Assim o Brasil consegue aliados para sua luta dentro dos Estados Unidos. E isto mostra o quanto o governo brasileiro não tem interesse em retaliar de verdade os EUA. O que o governo brasileiro quer é obrigar aquele país a negociar, o que já está ocorrendo pois o governo americano imediatamente enviou um negociador ao Brasil após a divulgação da lista no Diário Oficial.

Interessante notar que foram os países desenvolvidos que propuseram este tipo de retaliação cruzada na OMC. Seria uma forma de pressionar os países emergentes. Na época os subdesenvolvidos se posicionaram contra a proposta, mas acabaram aceitando desde que os desenvolvidos se curvassem também às decisões da OMC neste quesito. Hoje, ironicamente, tal decisão se volta contra os mais ricos.

Lamentavelmente nossa grande mídia não se comportou como o esperado no que diz respeito à defesa dos interesses brasileiros, aliás, como sempre. Como o jornalista Luiz Nacif apontou em artigo no IG, foi o caso de O Globo e do Jornal Nacional que, em vez de divulgar a lógica da retaliação, preferiram matérias mostrando que o aumento das alíquotas de importação prejudicaria o consumidor brasileiro – mesmo sabendo-se que existem produtos de outras origens para substituir o norte-americano.

O jogo das negociações está totalmente em aberto, pois finalmente os EUA aceitaram conversar. Cada lado vai buscar o melhor acordo possível. Previsivelmente os EUA deverão aportar recursos para um fundo destinado ao setor algodoeiro do Brasil, até porque não é do interesse de nenhum dos dois países iniciarem uma guerra comercial. Ponto para o Brasil.

domingo, 7 de março de 2010

Ainda é difícil nascer mulher em nossa sociedade


Marcio Azevedo


O Censo de 2010 deverá ratificar uma tendência recente da sociedade brasileira: há cada vez mais mulheres comandando famílias no país. Segundo dados de 2004, cerca de 30% das famílias brasileiras eram chefiadas por mulheres. Os mesmos dados indicam que as mulheres ganham em média 80% do salário dos homens realizando as mesmas tarefas, que 20% das chefes de família trabalham como domésticas e que só 4% das mulheres ocupadas no país ocupavam cargos de direção, majoritariamente no setor público onde há mais igualdade no tratamento. Nota-se, por estes poucos dados, o quanto ainda vivemos em uma sociedade machista e descomprometida com o processo de igualdade entre os gêneros. Além disso, percebe-se também que os homens apresentam um descompromisso maior com a manutenção e o sustento da família, uma postura definitivamente desprezível e irresponsável.

Abro colchetes para falar um pouco de minha família, das mulheres de minha família. Minha avó materna foi uma operária têxtil que se aposentou após trinta anos de trabalho. Começou a trabalhar nos anos 1920, quando a maioria absoluta das mulheres apenas cuidavam da casa. Minha avó, portanto, fez parte de um universo de cerca de 10% de mulheres do país que trabalhavam fora naquele período. Só por isto já é uma mulher digna de admiração. Mas ela foi além: casou-se com um jogador (de jogos de azar) e alcoólatra e ao invés de suportá-lo pelo resto da vida como a maioria das mulheres da época e uma imensa legião ainda hoje faz, mandou-o embora e decidiu criar as filhas sozinha. Mais tarde “amasiou-se”, como se dizia na época, com um viúvo, com quem teve mais um filho. E, até que ele morresse, nunca deixou que ele comandasse a casa. Quando minha mãe seguindo o exemplo dela, separou-se do meu pai, minha avó veio morar conosco para que ela pudesse trabalhar, assumindo mais um pesado fardo de cuidar e educar três crianças. E quando nenhuma das irmãs quis mais ficar com a mãe dela pois estava cega e esclerosada, trouxe-a para morar conosco até sua morte. Minha mãe, como já retratei em meu livro “Pródigas coordenadas, boas certezas e uma vida interessante”, seguiu os passos de minha avó e foi uma incansável batalhadora trabalhando por vários anos em dois empregos, geralmente bares, pois era uma excelente cozinheira, para conseguir nos sustentar. Quase não a víamos pois era comum ela trabalhar de domingo a domingo, folgando ocasionalmente. Mesmo assim nunca deixou de namorar e se divertir, o que acho particularmente extraordinário. E o que considero absolutamente incrível é que ela só se fragilizou após o terceiro derrame. Após os dois primeiros ela continuou ativa, embora não pudesse mais trabalhar fora. Além delas, há outras mulheres combatentes do cotidiano em minha família. Admiro todas. Venho, portanto, de uma família onde as mulheres sempre tiveram uma força extraordinária, romperam com padrões e contestaram as convenções de sua época, mesmo sem possuírem consciência política. Além da minha formação intelectual, com certeza este é um dos motivos do meu profundo respeito pelas mulheres e da minha absoluta aversão ao machismo. Fecho os colchetes.

No dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica têxtil de Nova Iorque, fizeram uma greve de ocupação, algo avançadíssimo para a época. Ocuparam a fábrica reivindicando melhores condições de trabalho, tais como redução na jornada diária para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. Os patrões, com anuência das autoridades trancaram as mulheres dentro da fábrica e a incendiaram. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas.

Em 1910, durante uma conferência na Dinamarca, ficou decidido que o 8 de março passaria a ser o "Dia Internacional da Mulher", em homenagem às mulheres que morreram na fábrica em 1857. Mas somente no ano de 1975, através de um decreto, a data foi oficializada pela ONU (Organização das Nações Unidas). Esta data, portanto, é um símbolo da luta das mulheres do mundo todo por justiça, tratamento igualitário e respeito às suas especificidades.

O patriarcalismo é um fenômeno relativamente recente na História dos seres humanos. Iniciou-se há cerca de 6 a 7 mil anos atrás, quando algumas sociedades começaram a se tornar mais complexas do ponto de vista de sua organização. Administrar tais sociedades passou a ser uma atribuição dos homens, que trataram de tornar isto um dogma, utilizando-se das religiões e do exército para embasar e cristalizar tal situação. Daí para cá as mulheres perderam espaço e foram sendo reduzidas sistematicamente a um papel irrelevante e insignificante dentro da sociedade. Ao mesmo tempo foram sendo convencidas de que deveriam obedecer aos homens e que sua função era, por vontade divina acima de tudo, secundária em quaisquer âmbitos. Gramsci afirmou que a dominação (hegemonia) mais eficaz ocorre quando o dominado acredita visceralmente que tal situação é a melhor para ele. Assim ocorreu com as mulheres nos últimos dois milênios. Passaram a crer e a defender a visão patriarcal de mundo.

Nos últimos 150 anos mulheres de todo o mundo, ora de forma voluntarista e individual, ora de forma organizada, puseram-se a lutar para garantir direitos e igualdade de tratamento em relação aos homens. Algumas dessas ações não podem ser esquecidas. As operárias estadunidenses de 1857, as sufragistas (que defendiam o direito de voto para as mulheres) européias do final do séc. XIX, Chiquinha Gonzaga, compositora e libertária do mesmo período no Brasil, Celina Viana, a primeira eleitora brasileira, em Mossoró (RN, 1927), as lutas feministas a partir da década de 60, e, mais recentemente, Maria da Penha, que lutou durante mais de 20 anos para que fosse aprovada uma lei no Brasil contra os maus-tratos às mulheres.

No momento em que o dia Internacional da Mulher completa 100 anos, não há como negar os inúmeros avanços no que diz respeito ao tratamento às mulheres no mundo todo. Mas não podemos esquecer que ainda há um longo caminho a ser percorrido. E este caminho não se limita aos países mais atrasados, aos lugares onde ainda se extirpa o clitóris das mulheres para que não tenham prazer sexual, aos lugares onde ainda se cometem crimes de honra contra as mulheres impunemente. Há muito que avançar também em países desenvolvidos onde o assédio moral e sexual contra as mulheres não deixou de existir, onde parcela significativa das mulheres ainda ganha menos que os homens, onde a visão do mando patriarcal ainda impera. As próximas gerações tem um significativo e determinante papel para mudar esta história. Jovens homens e principalmente jovens mulheres não podem se deixar cair na tentação da acomodação sob os papéis sexuais já estabelecidos. Precisam ter a coragem de romper com o passado e construir novas relações em que a democracia e a igualdade sejam o ponto de partida e de chegada em uma sociedade mais “civilizada”.