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domingo, 7 de março de 2010

Ainda é difícil nascer mulher em nossa sociedade


Marcio Azevedo


O Censo de 2010 deverá ratificar uma tendência recente da sociedade brasileira: há cada vez mais mulheres comandando famílias no país. Segundo dados de 2004, cerca de 30% das famílias brasileiras eram chefiadas por mulheres. Os mesmos dados indicam que as mulheres ganham em média 80% do salário dos homens realizando as mesmas tarefas, que 20% das chefes de família trabalham como domésticas e que só 4% das mulheres ocupadas no país ocupavam cargos de direção, majoritariamente no setor público onde há mais igualdade no tratamento. Nota-se, por estes poucos dados, o quanto ainda vivemos em uma sociedade machista e descomprometida com o processo de igualdade entre os gêneros. Além disso, percebe-se também que os homens apresentam um descompromisso maior com a manutenção e o sustento da família, uma postura definitivamente desprezível e irresponsável.

Abro colchetes para falar um pouco de minha família, das mulheres de minha família. Minha avó materna foi uma operária têxtil que se aposentou após trinta anos de trabalho. Começou a trabalhar nos anos 1920, quando a maioria absoluta das mulheres apenas cuidavam da casa. Minha avó, portanto, fez parte de um universo de cerca de 10% de mulheres do país que trabalhavam fora naquele período. Só por isto já é uma mulher digna de admiração. Mas ela foi além: casou-se com um jogador (de jogos de azar) e alcoólatra e ao invés de suportá-lo pelo resto da vida como a maioria das mulheres da época e uma imensa legião ainda hoje faz, mandou-o embora e decidiu criar as filhas sozinha. Mais tarde “amasiou-se”, como se dizia na época, com um viúvo, com quem teve mais um filho. E, até que ele morresse, nunca deixou que ele comandasse a casa. Quando minha mãe seguindo o exemplo dela, separou-se do meu pai, minha avó veio morar conosco para que ela pudesse trabalhar, assumindo mais um pesado fardo de cuidar e educar três crianças. E quando nenhuma das irmãs quis mais ficar com a mãe dela pois estava cega e esclerosada, trouxe-a para morar conosco até sua morte. Minha mãe, como já retratei em meu livro “Pródigas coordenadas, boas certezas e uma vida interessante”, seguiu os passos de minha avó e foi uma incansável batalhadora trabalhando por vários anos em dois empregos, geralmente bares, pois era uma excelente cozinheira, para conseguir nos sustentar. Quase não a víamos pois era comum ela trabalhar de domingo a domingo, folgando ocasionalmente. Mesmo assim nunca deixou de namorar e se divertir, o que acho particularmente extraordinário. E o que considero absolutamente incrível é que ela só se fragilizou após o terceiro derrame. Após os dois primeiros ela continuou ativa, embora não pudesse mais trabalhar fora. Além delas, há outras mulheres combatentes do cotidiano em minha família. Admiro todas. Venho, portanto, de uma família onde as mulheres sempre tiveram uma força extraordinária, romperam com padrões e contestaram as convenções de sua época, mesmo sem possuírem consciência política. Além da minha formação intelectual, com certeza este é um dos motivos do meu profundo respeito pelas mulheres e da minha absoluta aversão ao machismo. Fecho os colchetes.

No dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica têxtil de Nova Iorque, fizeram uma greve de ocupação, algo avançadíssimo para a época. Ocuparam a fábrica reivindicando melhores condições de trabalho, tais como redução na jornada diária para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. Os patrões, com anuência das autoridades trancaram as mulheres dentro da fábrica e a incendiaram. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas.

Em 1910, durante uma conferência na Dinamarca, ficou decidido que o 8 de março passaria a ser o "Dia Internacional da Mulher", em homenagem às mulheres que morreram na fábrica em 1857. Mas somente no ano de 1975, através de um decreto, a data foi oficializada pela ONU (Organização das Nações Unidas). Esta data, portanto, é um símbolo da luta das mulheres do mundo todo por justiça, tratamento igualitário e respeito às suas especificidades.

O patriarcalismo é um fenômeno relativamente recente na História dos seres humanos. Iniciou-se há cerca de 6 a 7 mil anos atrás, quando algumas sociedades começaram a se tornar mais complexas do ponto de vista de sua organização. Administrar tais sociedades passou a ser uma atribuição dos homens, que trataram de tornar isto um dogma, utilizando-se das religiões e do exército para embasar e cristalizar tal situação. Daí para cá as mulheres perderam espaço e foram sendo reduzidas sistematicamente a um papel irrelevante e insignificante dentro da sociedade. Ao mesmo tempo foram sendo convencidas de que deveriam obedecer aos homens e que sua função era, por vontade divina acima de tudo, secundária em quaisquer âmbitos. Gramsci afirmou que a dominação (hegemonia) mais eficaz ocorre quando o dominado acredita visceralmente que tal situação é a melhor para ele. Assim ocorreu com as mulheres nos últimos dois milênios. Passaram a crer e a defender a visão patriarcal de mundo.

Nos últimos 150 anos mulheres de todo o mundo, ora de forma voluntarista e individual, ora de forma organizada, puseram-se a lutar para garantir direitos e igualdade de tratamento em relação aos homens. Algumas dessas ações não podem ser esquecidas. As operárias estadunidenses de 1857, as sufragistas (que defendiam o direito de voto para as mulheres) européias do final do séc. XIX, Chiquinha Gonzaga, compositora e libertária do mesmo período no Brasil, Celina Viana, a primeira eleitora brasileira, em Mossoró (RN, 1927), as lutas feministas a partir da década de 60, e, mais recentemente, Maria da Penha, que lutou durante mais de 20 anos para que fosse aprovada uma lei no Brasil contra os maus-tratos às mulheres.

No momento em que o dia Internacional da Mulher completa 100 anos, não há como negar os inúmeros avanços no que diz respeito ao tratamento às mulheres no mundo todo. Mas não podemos esquecer que ainda há um longo caminho a ser percorrido. E este caminho não se limita aos países mais atrasados, aos lugares onde ainda se extirpa o clitóris das mulheres para que não tenham prazer sexual, aos lugares onde ainda se cometem crimes de honra contra as mulheres impunemente. Há muito que avançar também em países desenvolvidos onde o assédio moral e sexual contra as mulheres não deixou de existir, onde parcela significativa das mulheres ainda ganha menos que os homens, onde a visão do mando patriarcal ainda impera. As próximas gerações tem um significativo e determinante papel para mudar esta história. Jovens homens e principalmente jovens mulheres não podem se deixar cair na tentação da acomodação sob os papéis sexuais já estabelecidos. Precisam ter a coragem de romper com o passado e construir novas relações em que a democracia e a igualdade sejam o ponto de partida e de chegada em uma sociedade mais “civilizada”.

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