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domingo, 21 de março de 2010

O povo esquecido - A situação do Saara Ocidental

Marcio Azevedo


A Carta das Nações Unidas, de 1945, ratificada pelo artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos humanos, de 1948, consolidou no âmbito do Direito Internacional público o respeito ao princípio da igualdade de direitos e autodeterminação dos povos. Ao longo das últimas seis décadas a ação da ONU pautou-se pela defesa, na maioria das vezes retórica, deste princípio. Algumas práticas daquele organismo no que diz respeito ao tema devem ser ressaltadas. Por exemplo, o povo palestino tem representação na ONU, assim como os timorenses antes da independência também possuíam. Tendo em conta este princípio a ONU apoiou explicitamente a luta do povo da Namíbia por sua independência em relação à África do Sul (que ocorreu em 1990); deu apoio à independência da Eritréia em relação à Etiópia (que ocorreu em 1993); e, entre outras ações, deu apoio irrestrito à luta pela independência do já citado Timor Leste em relação à Indonésia (ocorrida em 2002).

Entre as muitas histórias trágicas de povos que vem lutando incessantemente por seu direito à autodeterminação e à soberania sobre seu território na atualidade, devemos obviamente lembrar dos palestinos, dos curdos, dos chechenos, dos tâmeis, entre muitos outros. Contudo há um povo que costuma ser esquecido não só pela mídia, mas também pela maioria dos organismos internacionais. Este povo vive em condições absurdamente injustas e de pobreza extrema para a maioria. Trata-se do povo saarauí.

O povo saarauí ocupa historicamente uma região na parte noroeste do continente africano, voltada para o oceano atlântico, entre 20° e 28° latitude Norte e 12° e 18° longitude Oeste aproximadamente, fazendo fronteira terrestre com Marrocos, Argélia e Mauritânia. O nome do território é SAARA OCIDENTAL, sendo considerada a última colônia da África.

Em 1975, após longo período de resistência do povo saarauí, a Espanha abandonou a sua antiga colônia, deixou para trás um país sem quaisquer infra-estruturas, com uma população completamente analfabeta e desprovida de tudo. Com apoio explícito do governo espanhol a Mauritânia (que assenhora-se de 1/3 do território, ao Sul) e o Marrocos (que fica com o restante), invocando direitos históricos, invadiram o território. Seguiu-se uma luta sem quartel em que o exército saarauí denominado Frente Polisário (acrônimo de Frente Popular de Libertação de Saguía el Hamra e Rio d’Ouro), apoiado pela Argélia, acuou o exército da Mauritânia -que acabou por desistir da reivindicação em 1979-, e conseguiu libertar a parte oriental do território. O exército marroquino, para proteger seus interesses, construiu um imenso muro de concreto, separando o leste da parte centro ocidental do país e mantém sob seu controle esta região até hoje. O interesse do Marrocos no território segundo o IEEI, Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais, “reside no facto deste constituir um dos maiores depósitos mundiais de fosfato, possuir consideráveis recursos piscatórios da costa marítima e (potencialmente) em termos de reservas de gás e petróleo.” Além disso, acredita-se que exista muito urânio, cobre e ferro na região.

Desde a década de 70 a ONU vem buscando um acordo que promova a paz na região e garanta a independência do Saara Ocidental. Uma das causas mais importantes da não obtenção de um acordo de paz é o total descaso das potências quanto à situação do povo saarauí. Os refugiados vivem em casebres de taipa, em casas de material mais resistente e em barracas, e submetidos a condições de vida extremamente difíceis - um calor tórrido no verão, um frio glacial no inverno e tempestades de areia. Dependem inteiramente da ajuda internacional e se consideram os esquecidos da terra.

Em 1991 uma missão da ONU impôs um cessar-fogo na região e acordou um referendo sobre seu destino político. O Marrocos aceitou, mas simplesmente não se mobilizou para a realização do referendo que ocorreria em 1993. Em 2003, o enviado especial da ONU para o território, James Baker, apresentou o Plano Baker, conhecido como Baker II, que daria imediata autonomia à Autoridade do Saara Ocidental durante um período transitório de cinco anos para se preparar para um referendo, oferecendo aos habitantes do território a possibilidade de escolher entre a independência, a autonomia no seio do Reino de Marrocos, ou a completa integração com Marrocos. A Frente Polisário aceitou o plano, mas Marrocos rejeitou-o.

O Saara Ocidental é governado do exílio pelo presidente Mohamed Abdelaziz, adotou o nome oficial de República Árabe Saarauí Democrática (RASD) e participa como membro efetivo da União Africana. As negociações prosseguem até hoje sem sucesso. Tanto a Espanha como a França mantém apoio ao Marrocos, dificultando a independência total do Saara Ocidental. Além das questões econômicas, há aspectos mais complicados. O Marrocos é um fiel aliado das potências ocidentais, além de estar localizado em uma região estratégica (na entrada do mar Mediterrâneo). E os Estados Unidos, embasados em sua estratégia de “Guerra ao Terror”, temem que o Saara Ocidental, independente, transforme-se em base para treinamento de militantes da Jihad islâmica (guerra santa).

Em 2007 o Marrocos e a Frente Polisário reiniciaram negociações mediadas pela ONU, mais uma vez sem sucesso. Esta semana a ONU anunciou mais uma vez que há chances reais de se chegar a um acordo e que o Marrocos estaria disposto a encontrar uma solução para o impasse. A despeito disso tudo o povo saarauí continua a viver sob condições ultra-difíceis e as soluções para sua situação ainda não chegaram após 35 anos de luta e espera.

Veja no mapa abaixo a situação do Saara Ocidental:


Em vermelho a parte ocupada pelo Marrocos; em
verde a parte ocupada pela Frente Polisário (RASD)

domingo, 14 de março de 2010

Brasil pressiona os EUA no caso do algodão

Marcio Azevedo

Esta semana o governo brasileiro publicou no Diário Oficial a primeira lista de produtos dos Estados Unidos que sofrerão taxações extras para serem importados daqui para frente. Tal medida é chamada de retaliação cruzada e refere-se ao direito obtido pelo Brasil junto à OMC (Organização Mundial do Comércio) de obter vantagens em valores acima de US$ 800 milhões no comércio com os EUA.

Há oito anos o Brasil luta na OMC para derrubar os subsídios (auxílio governamental) que o governo estadunidense oferece aos seus produtores de algodão, causando uma perda de competitividade dos produtores de outros países. Somente agora o governo brasileiro obteve vitória final para retaliar os EUA, obrigando-os a vir para a mesa de negociações.

A OMC foi criada em 1994 durante a Conferência de Marrakesch, ao termo das complexas negociações da Rodada Uruguai. O surgimento da OMC veio coroar a montagem da arquitetura mundial da nova ordem internacional, que começara a ser delineada no fim da Segunda Guerra Mundial, com a criação do FMI e do Banco Mundial, todas instituições surgidas de Bretton Woods. As suas funções são: gerenciar os acordos que compõem o sistema multilateral de comércio; servir de fórum para comércio internacional (firmar acordos internacionais); e supervisionar a adoção dos acordos e implementação destes pelos membros da organização (verificar as políticas comerciais nacionais). Outra função muito importante da OMC é o Sistema de Resolução de Controvérsias, o que a destaca entre outras instituições internacionais. Este mecanismo foi criado para solucionar os conflitos gerados pela aplicação dos acordos sobre o comércio internacional entre os membros da OMC. As negociações na OMC são feitas em Rodadas; atualmente ocorre a Rodada de Doha iniciada em 2001. Como se pode perceber a organização tem bastante poder no que diz respeito às questões comerciais internacionais.

Como o Brasil saiu vitorioso no contencioso sobre o algodão com os Estados Unidos, a OMC autorizou o país a fazer a retaliação cruzada, ou seja, taxar bens e serviços além da quebra de propriedade intelectual (patentes). Isto dá ao país um poder de barganha extraordinário, pois ao escolher (como fez o Brasil) taxar produtos importantes de áreas poderosas da economia estadunidense (filmes, veículos, etc.), o Brasil faz com que estes setores se voltem contra o governo dos EUA e o pressionem para negociar. Assim o Brasil consegue aliados para sua luta dentro dos Estados Unidos. E isto mostra o quanto o governo brasileiro não tem interesse em retaliar de verdade os EUA. O que o governo brasileiro quer é obrigar aquele país a negociar, o que já está ocorrendo pois o governo americano imediatamente enviou um negociador ao Brasil após a divulgação da lista no Diário Oficial.

Interessante notar que foram os países desenvolvidos que propuseram este tipo de retaliação cruzada na OMC. Seria uma forma de pressionar os países emergentes. Na época os subdesenvolvidos se posicionaram contra a proposta, mas acabaram aceitando desde que os desenvolvidos se curvassem também às decisões da OMC neste quesito. Hoje, ironicamente, tal decisão se volta contra os mais ricos.

Lamentavelmente nossa grande mídia não se comportou como o esperado no que diz respeito à defesa dos interesses brasileiros, aliás, como sempre. Como o jornalista Luiz Nacif apontou em artigo no IG, foi o caso de O Globo e do Jornal Nacional que, em vez de divulgar a lógica da retaliação, preferiram matérias mostrando que o aumento das alíquotas de importação prejudicaria o consumidor brasileiro – mesmo sabendo-se que existem produtos de outras origens para substituir o norte-americano.

O jogo das negociações está totalmente em aberto, pois finalmente os EUA aceitaram conversar. Cada lado vai buscar o melhor acordo possível. Previsivelmente os EUA deverão aportar recursos para um fundo destinado ao setor algodoeiro do Brasil, até porque não é do interesse de nenhum dos dois países iniciarem uma guerra comercial. Ponto para o Brasil.

domingo, 7 de março de 2010

Ainda é difícil nascer mulher em nossa sociedade


Marcio Azevedo


O Censo de 2010 deverá ratificar uma tendência recente da sociedade brasileira: há cada vez mais mulheres comandando famílias no país. Segundo dados de 2004, cerca de 30% das famílias brasileiras eram chefiadas por mulheres. Os mesmos dados indicam que as mulheres ganham em média 80% do salário dos homens realizando as mesmas tarefas, que 20% das chefes de família trabalham como domésticas e que só 4% das mulheres ocupadas no país ocupavam cargos de direção, majoritariamente no setor público onde há mais igualdade no tratamento. Nota-se, por estes poucos dados, o quanto ainda vivemos em uma sociedade machista e descomprometida com o processo de igualdade entre os gêneros. Além disso, percebe-se também que os homens apresentam um descompromisso maior com a manutenção e o sustento da família, uma postura definitivamente desprezível e irresponsável.

Abro colchetes para falar um pouco de minha família, das mulheres de minha família. Minha avó materna foi uma operária têxtil que se aposentou após trinta anos de trabalho. Começou a trabalhar nos anos 1920, quando a maioria absoluta das mulheres apenas cuidavam da casa. Minha avó, portanto, fez parte de um universo de cerca de 10% de mulheres do país que trabalhavam fora naquele período. Só por isto já é uma mulher digna de admiração. Mas ela foi além: casou-se com um jogador (de jogos de azar) e alcoólatra e ao invés de suportá-lo pelo resto da vida como a maioria das mulheres da época e uma imensa legião ainda hoje faz, mandou-o embora e decidiu criar as filhas sozinha. Mais tarde “amasiou-se”, como se dizia na época, com um viúvo, com quem teve mais um filho. E, até que ele morresse, nunca deixou que ele comandasse a casa. Quando minha mãe seguindo o exemplo dela, separou-se do meu pai, minha avó veio morar conosco para que ela pudesse trabalhar, assumindo mais um pesado fardo de cuidar e educar três crianças. E quando nenhuma das irmãs quis mais ficar com a mãe dela pois estava cega e esclerosada, trouxe-a para morar conosco até sua morte. Minha mãe, como já retratei em meu livro “Pródigas coordenadas, boas certezas e uma vida interessante”, seguiu os passos de minha avó e foi uma incansável batalhadora trabalhando por vários anos em dois empregos, geralmente bares, pois era uma excelente cozinheira, para conseguir nos sustentar. Quase não a víamos pois era comum ela trabalhar de domingo a domingo, folgando ocasionalmente. Mesmo assim nunca deixou de namorar e se divertir, o que acho particularmente extraordinário. E o que considero absolutamente incrível é que ela só se fragilizou após o terceiro derrame. Após os dois primeiros ela continuou ativa, embora não pudesse mais trabalhar fora. Além delas, há outras mulheres combatentes do cotidiano em minha família. Admiro todas. Venho, portanto, de uma família onde as mulheres sempre tiveram uma força extraordinária, romperam com padrões e contestaram as convenções de sua época, mesmo sem possuírem consciência política. Além da minha formação intelectual, com certeza este é um dos motivos do meu profundo respeito pelas mulheres e da minha absoluta aversão ao machismo. Fecho os colchetes.

No dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica têxtil de Nova Iorque, fizeram uma greve de ocupação, algo avançadíssimo para a época. Ocuparam a fábrica reivindicando melhores condições de trabalho, tais como redução na jornada diária para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. Os patrões, com anuência das autoridades trancaram as mulheres dentro da fábrica e a incendiaram. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas.

Em 1910, durante uma conferência na Dinamarca, ficou decidido que o 8 de março passaria a ser o "Dia Internacional da Mulher", em homenagem às mulheres que morreram na fábrica em 1857. Mas somente no ano de 1975, através de um decreto, a data foi oficializada pela ONU (Organização das Nações Unidas). Esta data, portanto, é um símbolo da luta das mulheres do mundo todo por justiça, tratamento igualitário e respeito às suas especificidades.

O patriarcalismo é um fenômeno relativamente recente na História dos seres humanos. Iniciou-se há cerca de 6 a 7 mil anos atrás, quando algumas sociedades começaram a se tornar mais complexas do ponto de vista de sua organização. Administrar tais sociedades passou a ser uma atribuição dos homens, que trataram de tornar isto um dogma, utilizando-se das religiões e do exército para embasar e cristalizar tal situação. Daí para cá as mulheres perderam espaço e foram sendo reduzidas sistematicamente a um papel irrelevante e insignificante dentro da sociedade. Ao mesmo tempo foram sendo convencidas de que deveriam obedecer aos homens e que sua função era, por vontade divina acima de tudo, secundária em quaisquer âmbitos. Gramsci afirmou que a dominação (hegemonia) mais eficaz ocorre quando o dominado acredita visceralmente que tal situação é a melhor para ele. Assim ocorreu com as mulheres nos últimos dois milênios. Passaram a crer e a defender a visão patriarcal de mundo.

Nos últimos 150 anos mulheres de todo o mundo, ora de forma voluntarista e individual, ora de forma organizada, puseram-se a lutar para garantir direitos e igualdade de tratamento em relação aos homens. Algumas dessas ações não podem ser esquecidas. As operárias estadunidenses de 1857, as sufragistas (que defendiam o direito de voto para as mulheres) européias do final do séc. XIX, Chiquinha Gonzaga, compositora e libertária do mesmo período no Brasil, Celina Viana, a primeira eleitora brasileira, em Mossoró (RN, 1927), as lutas feministas a partir da década de 60, e, mais recentemente, Maria da Penha, que lutou durante mais de 20 anos para que fosse aprovada uma lei no Brasil contra os maus-tratos às mulheres.

No momento em que o dia Internacional da Mulher completa 100 anos, não há como negar os inúmeros avanços no que diz respeito ao tratamento às mulheres no mundo todo. Mas não podemos esquecer que ainda há um longo caminho a ser percorrido. E este caminho não se limita aos países mais atrasados, aos lugares onde ainda se extirpa o clitóris das mulheres para que não tenham prazer sexual, aos lugares onde ainda se cometem crimes de honra contra as mulheres impunemente. Há muito que avançar também em países desenvolvidos onde o assédio moral e sexual contra as mulheres não deixou de existir, onde parcela significativa das mulheres ainda ganha menos que os homens, onde a visão do mando patriarcal ainda impera. As próximas gerações tem um significativo e determinante papel para mudar esta história. Jovens homens e principalmente jovens mulheres não podem se deixar cair na tentação da acomodação sob os papéis sexuais já estabelecidos. Precisam ter a coragem de romper com o passado e construir novas relações em que a democracia e a igualdade sejam o ponto de partida e de chegada em uma sociedade mais “civilizada”.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

OS PIIGS E AS TURBULÊNCIAS NA EURO-ZONA

AOS AMIGOS (NOVOS E ANTIGOS) DO BLOG:
Após dois longos meses de férias volto a escrever e postar artigos no blog. Tomei a decisão de só postar artigos de minha autoria. Considero isto importante pois me estimulará a escrever mais. Os textos de outros autores continuarei a enviar através do meu e-mail para aqueles que assim o desejarem (professormarcioazevedo@gmail.com).
Divirtam-se com este artigo sobre as turbulências na União Européia.


OS PIIGS E AS TURBULÊNCIAS NA EURO-ZONA

Marcio Azevedo

O projeto da moeda única européia faz parte de uma construção político-econômica originada no pós-guerra. As disputas imperialistas do século XIX avançaram pelo XX afora, causando destruição em larga escala, devido às duas grandes guerras. No “frigir dos ovos” tais guerras nada mais foram do que uma continuidade de séculos de belicosidades entre boa parte dos países europeus.

Ocorre que, ao final da Segunda Guerra, quase todo o planeta havia sido envolvido e sofrido as consequências disso. Daí a necessidade de se buscar efetivar a concórdia entre os antigos oponentes. Daí a importância do surgimento da ONU. Além do mais, a configuração geopolítica que emergiu no pós-guerra já não era mais favorável aos europeus visto que havia duas novas potências em conflito. O sonho inglês e francês de ver Hitler destruir o socialismo soviético transformou-se em pesadelo, já que a URSS saiu da guerra extremamente fortalecida.

Neste contexto, impôs-se a necessidade de novos arranjos institucionais capazes de fazer cessar as tradicionais contendas e, ao mesmo tempo, impulsionar as economias esfaceladas pela destruição dos combates e o esforço de guerra. Com apoio dos Estados Unidos, França e Alemanha, velhos rivais, lançaram-se à liderança do processo de construção de uma experimentação econômica multinacional que mais tarde transformar-se-ia em um projeto político de grande envergadura, o MCE (Mercado Comum Europeu, que a partir de 92 transformou-se em UNIÃO EUROPÉIA).

O Tratado de Maastricht(1992) estabeleceu as condições para a entrada em circulação do EURO, a moeda única européia, e para que cada país do bloco pudesse aderir ao mesmo. As mais importantes são: ao aderir ao euro o país abre mão de sua política monetária e cambial, visto que isto é atribuição do BCE, o Banco Central Europeu; o déficit fiscal (diferença entre a arrecadação e as despesas governamentais) não pode exceder anualmente 3% do PIB; e a dívida pública não pode exceder 60% do PIB.

Quando o euro entrou em circulação física em 2002, dos 15 países do bloco 11 aderiram. Posteriormente este número aumentou para 16 em função, principalmente, da entrada de 12 novos membros na União Européia. Pois bem, o que tudo isto tem a ver com as turbulências econômicas pelas quais vários países europeus tem passado nos últimos meses? Simples. Vários países “maquiaram” seus balanços para poder adotar o euro. Atualmente, a União Européia está investigando 12 países entre os 16 da zona do euro por suspeita de “contabilidade criativa”.

Alguns países em especial estão em uma situação bastante delicada. Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha vem sofrendo inúmeros reveses pois seus déficits fiscais estão muito elevados (Irlanda – 12,2%, Grécia – 9,8%, etc) e suas dívidas públicas não param de subir (Itália – 100,8% do PIB, Grécia – 94,5% do PIB). Esta situação desmoraliza a zona do euro e contribui para a desvalorização da moeda nos mercados internacionais. Os mercados tem utilizado o termo PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha(Spain em inglês)), fazendo uma alusão à palavra porcos em inglês, para se referir aos problemas causados por estes 5 países.

Mas, por que tudo isto veio à tona neste momento? Na verdade tal “castelo de cartas” começou a ruir a partir de 2008, quando a crise financeira internacional sofreu o grande baque causado pela quebra do Lehman Brothers, AIG e outros. A partir daí os empréstimos internacionais escassearam por um bom período deixando inúmeros países com suas finanças a descoberto, visto que não conseguiam mais se refinanciar. Ficou claro que havia uma enorme quantidade de países extremamente alavancados (deviam demais e não tinham condições de honrar estas dívidas em um momento de crise) por pura irresponsabilidade de seus governantes e ganância dos agentes financeiros.

Na Europa o problema pode gerar um turbilhonamento econômico gigantesco devido à aposta feita na criação da zona do euro e na consequente política cambial e monetária única. Ou seja, se um país do grupo quebra ou dá um “calote” (default), arrasta todos os outros com ele. O economista e ex-ministro Delfim Netto considera que uma situação como esta “pode levar à destruição do euro e a uma crise do tamanho da de 1929(...)”.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Lula, o mundo e a mídia

EXCELENTE ESTE ARTIGO DO BETO ALMEIDA. LEIAM COM ATENÇÃO.

Beto Almeida

"O mundo me condena
e ninguém tem pena
falando sempre mal do meu nome
deixando de saber,
se eu vou morrer de sede
ou se eu vou morrer de fome!"
"Filosofia", Noel Rosa

Fortes e originais declarações de Lula sobre questões espinhosas e complexas do cenário internacional provocam boa oportunidade para nova avaliação sobre a ausência de sintonia entre o eco internacional positivo das falas presidenciais e o tratamento editorial negativo que a mídia nacional lhe atribui, quase por unanimidade.

Primeiro, há que reconhecer: Lula tem tido a audácia de tocar em temas considerados intocáveis como, por exemplo, ao questionar e criticar a reserva de mercado de fato de um clube restrito de países atômicos que pretende impor o desarmamento aos demais países. E, quando algum destes países periféricos reivindica o direito natural e histórico à isonomia de também possuir tecnologia nuclear é logo condenado como se seus objetivos fossem inquestionavelmente terroristas. E são logo colocados no “Eixo do Mal” criado pelo belicoso George Bush.

Já sabemos que os atentados de 11 de setembro de 2001 foram usados como um pretexto pelo mais intervencionista dos países para interferir ainda mais truculenta em cada canto do planeta onde conseguisse. Aliás, recomenda-se a leitura do site “Cientistas pela Verdade”, no qual a versão oficial é questionada com consistência. Após surgir a categoria do “Eixo do Mal”, vem o golpe midiático fracassado contra Chávez com apoio dos EUA, as prisões clandestinas de “suspeitos” em vários países seqüestrados em vôos clandestinos que usaram bases militares de países europeus que se autodenominam democráticos. Surgiu também a campanha contra as “armas químicas de destruição em massa no Iraque” que , com o apoio midiático internacional dos que controlam o fluxo da informação planetária, resultou na invasão sanguinária àquele país do Oriente Médio. As tropas de ocupação ainda lá estão sem que o Obama, agora Prêmio Nobel da Paz, tenha conseguido fazer com que seu discurso de mudanças tenha tradução verdadeira em atos de sua política externa, que é quase sempre militar, sendo sempre intervencionista.

Eixo do Mal: dirigismo ideológico
Na cabeça de Bush - não mencionamos cérebro - o Eixo do Mal era composto por Iraque, Coréia do Norte, Irã, Cuba e provavelmente a Venezuela. Cuba continua bloqueada, mas, mesmo assim, exporta médicos, professores, vacinas, remédios, livros, desportistas, para mais de 70 países. Os EUA, e os “democráticos” países europeus da OTAN, vão exportando militares, armas, inclusive, obviamente as de destruição em massa. O presidente do Timor Leste, jornalista e poeta Ramos-Horta, me informou que os EUA pressionaram-no para que não recebesse os 350 médicos cubanos que lá estão reconstruindo a nação timorense do mais cruel genocídio da era moderna, proporcionalmente falando. Ramos apenas perguntou ao embaixador norte-americano: “quantos médicos os EUA têm aqui em Timor?” Nenhum! Pois estão lá os 350 médicos cubanos e 600 jovens timorenses estudando medicina em Cuba, gratuitamente!

Ao defender Cuba, ampliando as relações Brasil-Cuba, condenando o bloqueio imposto à Ilha e ao quebrá-lo na prática quando instala empresas estatais brasileiras na Ilha, como a Embrapa, a Petrobrás, etc, Lula vai fazendo sua política na contracorrente da política intervencionista do Eixo do Mal. Como complemento, quando os jovens timorenses se formarem em medicina, antes de voltarem à Ásia, farão estágio na Fiocruz no Brasil, como reza o acordo que Lula firmou com Ramos-Horta

Coréia do Norte está lá de pé porque tem armas atômicas, senão seu destino poderia ter sido o do Iraque. E isto tem que ficar muito claro e ser lembrado todos os dias por todos os brasileiros, dos seringueiros aos militares, dos cientistas aos cineastas, dos religiosos aos carnavalescos. Basta mencionar que um suposto relatório da CIA, divulgado pelo extinto jornal Tribuna da Imprensa, dava conta da vulnerabilidade das torres petroleiras da Petrobrás a ataques terroristas. Lula mandou embaixador para a Coréia do Norte, Arnaldo Carilho, que é também grande pensador do cinema, da brasilidade e da soberania informativo-cultural brasileiras. Lula, outra vez, atuou com independência na contracorrente da linha Eixo do Mal, que tem sua vertente midiática.

Hipocrisia editorial
Recentemente, registrou-se a campanha midiática para que Lula não recebesse o presidente iraniano Mahmud Ahjmadinejad. Para este jornalismo, é como se o Brasil não tivesse direito de ter posições independentes e soberanas em política externa. Este mesmo jornalismo calou-se quando o então chanceler brasileiro da era da privataria obedeceu um guardinha de alfândega nos EUA que lhe obrigou a tirar os sapatos para entrar naquele país. O chanceler assumiu ali sua vocação para vassalagem.... Esta política externa de pés descalços foi arquivada por Lula. Junto com ela o projeto da ALCA, a terceirização/alienação da Base de Alcântara e outras.

Quando Lula não apenas discordou da mandatária alemã Ângela Merkel e também disse que as potências atômicas não têm moral para exigir que o Irã não tenha direito ao seu programa nuclear, percebemos novamente como opera a linha editorial subproduto do princípio ideológico do “Eixo do Mal”. Lula estaria, segundo ela, defendendo um país que apoiaria o terrorismo do Hamas e do Hezbolah. Não há o menor esforço para informar, nem internacionalmente, nem aqui, que o Hamas é um partido político eleito pelo voto direto da população palestina que habita a Faixa de Gaza para o exercício do governo. E como todo governo, tem o direito de ter armas, política de defesa. Israel não tem suas armas atômicas?

Sem informação, como julgar?
Não há também a menor vontade de informar que o Hezbolah é um movimento político, que tem praticamente a metade do Parlamento do Líbano, que tem cargos no governo libanês, administrando boa parte da política de saúde e de educação daquele país de preciosa presença na formação do nosso povo. É apenas por ser parte do estado no Líbano que se pode entender como o Hezbolah resistiu e impôs uma verdadeira derrota às agressões de Israel há alguns anos, após o que, pelo voto direto, ampliou sua participação na administração pública libanesa. Vale registrar que a TV do Hezbolah resistiu por várias semanas a terríveis bombardeios israelenses sem sequer sair do ar. Segundo escassas informações, a emissora teve seus transmissores instalados em vários lugares, subterrâneos, exatamente para resistir aos bombardeios. Trata-se de emissora de TV que pode ser sintonizada em todo o mundo árabe e também na Europa. Talvez isto sirva de estímulo para a TV Brasil vencer todos os obstáculos que ainda a impedem ter visibilidade em todo o território nacional, e também internacionalmente, já que o Brasil pretende, legitimamente, ser protagonista de primeira linha no complexo cenário internacional. Para isto já aposentou corretamente a vassalagem da política de externa de “pés descalços” e , com a criação da TV Brasil, pode construir também uma política de comunicação internacional, aliás como já anunciado. Só lembrando, na Era Vargas, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro era a quarta mais potente emissora do planeta, captada em todos os continentes, transmitindo em 4 idiomas......

Seria muito útil que a TV Brasil informasse ampla e profundamente sobre o que ocorre na Palestina, sob todos os ângulos, e também sobre o que é o Hamas, o que é o Hezbolah, como é o Líbano hoje em cuja configuração de poder político tem a presença, pelo voto direto popular, do Hezbolah. Da outra mídia, que tenta desqualificar a política externa praticada por Lula, e que tenta insinuar que Brasil está estabelecendo cooperação mais ampla com um país (Irã) que “apoiaria o terrorismo”, não podemos esperar informações objetivas e verazes sobre estes processos. Afinal, trata-se de uma mídia que segue o manual de jornalismo do “Eixo do Mal” e condena tudo o que questione esta linha, como agora critica Lula por sua audaciosa posição contra os privilégios dos países atômicos que querem manter os outros desarmados.....Tudo isto tem tradução no jornalismo. Ou seja, Lula tem sido singular construtor de pautas para um jornalismo independente. É preciso aproveitá-las com criatividade e originalidade. Ter a audácia, como Lula o faz em política internacional, de discordar da linha editorial convencional sobre temas tão complexos.

Honduras: a isca ideológica do golpismo
No golpe de Honduras a posição valente da política externa brasileira confrontou-se com a linha editorial praticante do “dirigismo de mercado” que, por não admitir em nenhuma hipótese que aquele país centro-americano desenvolvesse cooperação nas áreas de saúde e educação com Cuba, nas áreas agrícola e energética com a Venezuela, optou pela defesa do golpe. Esta mídia engoliu com prazer a isca ideológica do golpismo, segundo a qual, Zelaya é que era o golpista porque queria sua própria reeleição. Mas, este item sequer constava da consulta popular que seria submetida ao povo hondurenho quando o golpe foi dado. Mas, constava da consulta a destinação da base militar norte-americana no país.......

Tal como na invasão do Iraque, quando a isca ideológica era “as armas de destruição em massa”, no caso de Honduras, o Zelaya é que foi transformado em golpista. O New York Times já pediu desculpas seus leitores por ter difundido a mentira das “armas de destruição em massa”, afinal, jamais encontradas. A não ser nas mãos das tropas da OTAN que contaminaram a Yugoslávia e o Iraque com bombas de urânio empobrecido.

Uma vez mais, Lula foi por um lado, “não converso com golpista” , declarou, e a linha editorial da mídia nacional foi na conversa do Partido Pentágono Republicano que impõe seu dirigismo em nome das encomendas da indústria bélica. A solução para estes desencontros é mais informação, mais pluralidade. Por exemplo: com a ajuda da PDVSA, petroleira estatal Venezuela, Zelaya trocou todas as lâmpadas de todas as residências de Honduras por lâmpadas chinesas, que gastam 70 por cento menos de energia. E Honduras tem escassez energética, depende de termoelétricas, celebrou acordo sobre biocombustíveis com o Brasil. Não fica mais claro compreender o porquê do golpe contra Zelaya? E quando será informado que houve descoberta de petróleo na costa hondurenha?

Venezuela: excesso de democracia
No caso venezuelano há fartos exemplos de desinformação e manipulação por parte desta mídia. Chega até a por em dúvida se houve de fato golpe de estado. Aqui no Brasil, a mídia que apoiou o golpe de 1964 também disse que houve “revolução” porque havia vacância de poder. Na Venezuela o presidente da república foi seqüestrado e a mídia mentiu dizendo que ele havia renunciado.

Mas, concentremo-nos no total desencontro das posições de Lula contra esta mídia que segue editorialmente o Partido Republicano-Pentágono, ou os princípios filosóficos editoriais do Eixo do Mal.

Enquanto toda esta mídia afirma que há ditadura na Venezuela, Lula afirma que “na Venezuela há democracia em excesso”. Em 10 anos, foram realizadas 15 eleições, referendos, constituinte, plebiscitos, dois quais Chávez venceu 14 e respeitou o resultado quando foi derrotado. Este desencontro total alcança até mesmo a linha editorial do Observatório da Imprensa na TV, que nos dois programas especiais sobre a Pátria de Bolívar afirmou que lá há ataque à mídia independente. Registre-se que foram considerados “mídia independente” veículos que compõem o Grupo de Diários da América, jornalões vinculados à SIP – Sociedade Interamericana de Prensa , entidade fundada pela Cia no pós-guerra e que sustentou todos os golpes militares na América Latina, seja o golpe contra Perón, contra Jango, contra Allende, tendo apoiado as mais sanguinárias ditaduras da região. Esta mídia atua livremente na Venezuela, ofende e insulta o presidente Hugo Chávez seja por ser negro ou por ser descendente de índio. Assim como esta mesma mídia chama o presidente Evo Moralez de “narcotraficante”, chama a Chávez de “negro doido”, “selvagem”,”psicopata”, “bêbado”.

Detalhe interessante, não ressaltado no programa televisivo citado: não há jornalistas presos na Venezuela, nenhum jornalista foi assassinado, nem torturado, como ocorre agora mesmo na Colômbia, no México, no Peru, em Honduras de Michelleti. Outra informação interessante: o maior jornal da Venezuela, o Nacional, vendia 400 mil exemplares quando Chávez foi eleito, em 1998. Hoje, após dez anos depois de oposicionismo anti-chavista, vende apenas 40 mil exemplares. A Folha de São Paulo, que já imprimiu 1 milhão e hoje caiu para uma tiragem 3 vezes menor, e com uma vendagem de bancas em torno de 30 mil exemplares apenas, deve estar fazendo suas contas. Mas, mesmo assim, tem a petulância de defender o fechamento da TV Brasil, a única emissora que cumpre integralmente o capítulo da Comunicação Social da Constituição, com uma programação cidadã, plural, diversificada, regionalizada, educativa e humanizadora para o público infantil, respeitosa para com a cultura nacional, do samba ao cinema. Falta o futebol , né?

Independente de quem?
Sobre o grupo empresarial que perdeu a concessão da Rádio e TV Caracas, é preciso informar que a concessão, como ocorre em qualquer país, tem prazo limitado por lei e este prazo terminou. Aqui no Brasil as concessões de rádio e TV de grupos poderosos são renovadas automaticamente. Na prática, adquirem caráter de vitaliciedade. Chávez quebrou um tabu ao não renovar a concessão para o mesmo grupo empresarial, exercendo sua prerrogativa presidencial, prevista em lei, como na maioria dos países do mundo. Mas aquela TV continua operando no cabo, não foi fechada. Isto não foi informado. Não teve a concessão renovada porque o espectro radioelétrico é propriedade do povo venezuelano, não é propriedade privada. Nos EUA centenas de concessões foram revogadas desde meados do século passado. Na França, o presidente Chirac também não renovou concessões. Na Inglaterra de Tatcher, idem. Por que será que contra estes países não houve a escandalosa campanha midiática mundial que se fez contra Chávez?

Estes desencontros entre as posições fortes, destemidas e originais de Lula em política internacional e a linha editorial conservadora, submissa e de ideologia dependente da mídia nacional deveriam merecer um bom debate. Mas, era importante que este debate fosse para as telas da TV e para as ondas do Rádio já que nossa mídia impressa além de ser fechada ao tema, registra taxas indigentes de leitura de jornal e revista. Assim, só mesmo as emissoras do campo público da comunicação, a começar pelos veículos da EBC, as TVs educativas, as legislativas, as universitárias e as comunitárias podem de fato abrir-se democraticamente a este debate e dar-lhe caráter amplo e plural que merece. E é exatamente por isso que são tão justas e tão necessárias as propostas de fortalecimento, expansão e qualificação de todas as modalidades da comunicação pública. É por isso mesmo que elas precisam ser aprovadas nesta primeira Conferência Nacional de Comunicação, a ter início no dia 14 de dezembro. Sendo emblemático que ela tenha a presença de Lula na abertura.

Beto Almeida é Presidente da TV Cidade Livre de Brasília

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Paradoxos das Migrações na Europa

OBS.: ALUNOS DO 3ºANO DO EQUIPE QUE ESTEJAM EM RECUPERAÇÃO DEVEM LER COM ATENÇÃO ESTE TEXTO.

Catherine de Wenden, jurista e politóloga, directora de investigação no CERI (CNRS-Sciences Po) responde a questões sobre o fenómeno migratório na Europa, numa entrevista à Nouvelle Europe.

O que é que está em causa no fenómeno das migrações na Europa?

Antes de mais, é preciso dar ênfase às lacunas de mão-de-obra em certos sectores, sem esquecer a situação demográfica de um continente envelhecido. Devemos então mencionar a necessidade da Europa se posicionar no âmbito da competição mundial para a produção de conhecimento, atraindo os mais criativos.

Perante isto, é necessário opor o fechamento deste espaço comum que dura há trinta anos. São estes os elementos de base de um paradoxo migratório europeu. A partir de meados dos anos 70, países como a França ou a Alemanha fecharam-se à imigração de trabalho e familiar. Isto teve como resultado dois fenómenos principais: a sedentarização do trabalho e a questão dos indocumentados. Mais tarde, constatamos uma maior fluidez migratória com o Leste do continente do que com o Sul, tornando-se o Mediterrâneo uma espécie de obstáculo.

Qual é a sua posição relativamente às políticas comunitárias sobre esta matéria?

O problema reside no próprio sentido. Tomando como exemplo o Pacto sobre a Imigração: dois quintos das cláusulas destinam-se à luta contra os fluxos, contra a imigração clandestina e ao controlo das fronteiras ou pontos de entrada. No entanto, o próprio projecto Euromed da presidência francesa não mencionava sequer a questão migratória! Os parágrafos sobre “a fluidez de trocas” não referiam os Vistos...

Encontramos os princípios do paradoxo enunciados logo de início. Na realidade, a Europa parece conferir aos países do Sul do Mediterrâneo um papel de guarda-fronteiriço, como testemunham os diferentes episódios relativos às políticas de readmissão. Mas este também é o caso para os vizinhos a Leste. A Ucrânia pode ser uma ilustração deste processo, já que se tornou um ponto de passagem. Além das pessoas que tentam entrar na UE por esta via (migrantes de proveniências variadas: África, Médio-Oriente, Ásia Menor…) assistimos hoje a Migrações Pendulares de uma e outra parte da fronteira, como é o caso da Polónia. A mobilidade tornou-se um modo de vida, nomeadamente no plano profissional (trabalhos pouco qualificados, serviços, mas também comércio…).

Para apreender o fenómeno migratório, utilizamos frequentemente tipologias: “Migração Voluntária” ou “Forçada”, motivações políticas, motivações económicas… Esta visão parece-lhe pertinente?

Estas categorias são evidentemente enganosas. Estas qualificações simplificam a realidade ou deformam-na. São herdeiras da Convenção de Genebra (1951) que distinguia refugiados políticos ou dissidentes (da Europa de Leste, por exemplo) dos migrantes económicos. O exemplo das restrições francesas ao reagrupamento familiar retrata-o. Pensamos poder distinguir os migrantes de trabalho, stricto sensu, mas os migrantes vêm trabalhar e procuram instalar-se em família. Mal chegam, vão procurar trabalho, na maioria das vezes ainda com filhos muito novos. Os requerentes de asilo vêm igualmente à procura de emprego.

Uma distinção esclarecedora será antes aquela que encare primeiro a temporalidade da migração: de longa ou curta duração. Mas hoje todas as idades estão implicadas. Encontramos menores isolados, raparigas jovens que foram procurar trabalho temporário a Itália mas que acabam por se instalar e casar nas regiões rurais, estas vítimas de um certo êxodo rural feminino em direcção às cidades…

O que é que podemos então pensar dos relatórios que se debruçam sobre Migrações e Identidade na Europa?

Temos de ter em atenção que a Europa já se tinha apresentado como espaço de partida no século XIX, em direcção aos Estados Unidos ou à Argentina, por exemplo. Tornou-se deste modo um espaço de trânsito, antes através das cidades portuárias da costa atlântica. Mas hoje em dia a Europa está a exprimentar um novo momento histórico que a transformou numa terra de imigração, após o final da II Guerra Mundial.

Neste contexto, a importância numérica das migrações triplicou nos últimos quarenta anos, enquanto que as políticas sobre estas se têm tornado mais severas.. Isto resulta em duas fracturas, também elas pontos de passagem: as “fronteiras” meridionais e orientais da Europa-Schengen.

Assim quanto mais nos fechamos às vindas de populações do Sul ou do Leste, maior a distância entre esses “outros” espaços. Para a resolução do problema, perante os riscos de conflitos e tensões engendrados por um fechamento, as migrações apresentam-se enquanto um meio de ajustamento económico e cultural.

Por Adrien Fauve, adaptado de: http://www.metiseurope.eu/paradoxes-des-migrations-en-europe_fr_70_art_28280.html

domingo, 6 de dezembro de 2009

O debate da política externa: os conservadores

José Luís Fiori

“É desconfortável recebermos no Brasil o chefe de um regime ditatorial e repressivo. Afinal, temos um passado recente de luta contra a ditadura, e firmamos na Constituição de 1988 os ideais de democracia e direitos humanos. Uma coisa são relações diplomáticas com ditaduras, outra é hospedar em casa os seus chefes”.

José Serra, “Visita indesejável”, FSP, 23/11/2009

Já faz tempo que a política internacional deixou de ser um campo exclusivo dos especialistas e dos diplomatas. Mas só recentemente, a política externa passou a ocupar um lugar central na vida pública e no debate intelectual brasileiro. E tudo indica que ela deverá se transformar num dos pontos fundamentais de clivagem, na disputa presidencial de 2010. É uma conseqüência natural da mudança da posição do Brasil, dentro do sistema internacional, que cria novas oportunidades e desafios cada vez maiores, exigindo uma grande capacidade de inovação política e diplomática dos seus governantes.

Neste novo contexto, o que chama a atenção do observador, é a pobreza das idéias e a mediocridade dos argumentos conservadores quando discutem o presente e o futuro da inserção internacional do Brasil. A cada dia aumenta o numero de diplomatas aposentados, iniciantes políticos e analistas que batem cabeça nos jornais e rádios, sem conseguir acertar o passo, nem definir uma posição comum sobre qualquer dos temas que compõem a atual agenda externa do país. Pode ser o caso do golpe militar em Honduras, ou da entrada da Venezuela no Mercosul; da posição do Brasil na reunião de Copenhague ou na Rodada de Doha; da recente visita do presidente do Irã, ou do acordo militar com a França; das relações com os Estados Unidos ou da criação e do futuro da UNASUL.

Em quase todos os casos, a posição dos analistas conservadores é passadista, formalista, e sem consistência interna. Além disto, seus posicionamentos são pontuais e desconexos, e em geral defendem princípios éticos de forma desigual e pouco equânime. Por exemplo, criticam o programa nuclear do Irã, e o seu desrespeito às decisões da comissão de energia atômica da ONU, mas não se posicionam frente ao mesmo comportamento de Israel e do Paquistão, que além do mais, são Estados que já possuem arsenais atômicos, que não assinaram o Tratado de Não Proliferação de Armas Atômicas, e que tem governos sob forte influência de grupos religiosos igualmente fanáticos e expansivos.

Ainda na mesma linha, criticam o autoritarismo e o continuísmo “golpista” da Venezuela, Equador e Bolívia, mas não dizem o mesmo da Colômbia, ou de Honduras; criticam o desrespeito aos direitos humanos na China ou no Irã, e não costumam falar da Palestina, do Egito ou da Arábia Saudita, e assim por diante. Mas o que é mais grave, quando se trata de políticos e diplomatas, é o casuísmo das suas análises e dos seus julgamentos, e a ausência de uma visão estratégica e de longo prazo, para a política externa de um Estado que é hoje uma “potência emergente”.

Como explicar esta súbita indolência mental das forças conservadoras, no Brasil? Talvez, recorrendo à própria história das idéias e das posições dos governos brasileiros que mantiveram, desde a independência, uma posição político-ideológica e um alinhamento internacional muito claro e fácil de definir. Primeiro, com relação à liderança econômica e geopolítica da Inglaterra, no século XIX, e depois, no século XX - e em particular após à Segunda Guerra Mundial - com relação à tutela norte-americana, durante o período da Guerra Fria. O inimigo comum era claro, a complementaridade econômica era grande, e os Estados Unidos mantiveram com mão de ferro, a liderança ética e ideológica do “mundo livre”.

Depois do fim Guerra Fria, os governos que se seguiram adotaram as políticas neoliberais preconizadas pelos Estados Unidos e se mantiveram alinhados com a utopia “cosmopolita” do governo Clinton. A visão era idílica e parecia convincente: a globalização econômica e as forças de merca­do produziriam a homogeneização da riqueza e do desenvolvi­men­to, e estas mudanças econômicas contribuíram para o desaparecimento dos “egoísmos nacionais”, e para a construção de um governo democrático e global, responsável pela paz dos mercados e dos povos. Mas como é sabido, este sonho durou pouco, e a velha utopia liberal - ressuscitada nos anos 90 - perdeu força e voltou para a gaveta, junto com a política externa subserviente dos governos brasileiros, daquela década.

Depois de 2001, entretanto, o “idealismo cosmopolita” da era Clinton foi substituído pelo “messianismo quase religioso” da era Bush, que seguiu defendendo ainda por um tempo o projeto ALCA, que vinha da Administração Clinton. Mas depois da rejeição sul-americana do projeto, e depois da falência do Consenso de Washington e do fracasso da intervenção dos Estados Unidos a favor do golpe militar na Venezuela, de 2002, a política externa americana para a América do Sul ficou à deriva, e os Estados Unidos perderam a liderança ideológica do continente, apesar de manterem sua supremacia militar e sua centralidade econômica. Neste mesmo período, as forças conservadoras foram sendo desalojadas do poder, no Brasil e em quase toda a América do Sul. Mas apesar disto, durante algum tempo, ainda seguiram repetindo a sua ladainha ideológica neoliberal.

O golpe de morte veio depois, com e eleição de Barak Obama. O novo governo democrata deixou para trás o idealismo cosmopolita e o messianismo religioso dos dois governos anteriores, e assumiu uma posição realista e pragmática, em todo mundo. Seu objetivo tem sido em todos os casos, manter a presença global dos Estados Unidos, com políticas diferentes para cada região do mundo. Para a América do Sul sobrou muito pouco, quase nada, como estratégia e como referência doutrinária, apenas uma vaga empatia racial e um anti-populismo requentado. Como conseqüência, agora sim, nossos conservadores perderam a bússola. Ainda tentam seguir a pauta norte-americana, mas não está fácil, porque ela não é clara, não é moralista, nem é binária. Por isto, agora só lhes resta pensar com a própria cabeça para sobrevier politicamente. Mas isto não é fácil, toma tempo, e demanda um longo aprendizado.

*Publicado originalmente no jornal Valor Econômico

José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.